segunda-feira, 16 de março de 2009

O Bicho Invisível

Maristela Scheuer Deves

Nem lembro mais a última vez em que fui à praia. Não que eu não goste de mar, sol e calor. É que não quero mostrar meu corpo. Não quero que vejam as cicatrizes nos meus braços, nas minhas pernas, no meu corpo todo. Por isso, sempre uso mangas longas e calças compridas, mesmo no verão. Mas se você pensa que é a vergonha que me impele a esconder a marcas, está enganado. São as lembranças. Se alguém perguntar de onde elas vêm, eu vou ser obrigada a recordar...

Eu era criança, lá pelos meus onze anos. Adorava correr, brincar com minhas amigas. E, principalmente, pregar peças em uma delas, Clarice, a menorzinha. Com apenas oito anos, ela era a vítima perfeita para nossas brincadeiras nem sempre tão inocentes.

Naquela tarde, havíamos ido até uma propriedade dos pais de Eva, a garota que morava em frente à minha casa. Era a “morada velha”, como Seu Balduíno, pai de Eva, chamava o antigo sítio onde a família habitara até minha amiga ter dois ou três anos. O lugar ficava a uns cinco ou seis quilômetros de nossas casas, por isso fomos todas – eu, Eva e Clarice – empoleiradas na traseira da caminhoneta do Seu Balduíno (naquele tempo, isso ainda não era proibido).

Chegando ao sítio, brincamos algum tempo de esconde-esconde, mas logo a brincadeira foi perdendo a graça. Até que chegou a hora em que não conseguíamos encontrar Eva. Era a vez de Clarice procurar, por isso em princípio achei divertido, mas quando já se tinham passado mais de vinte minutos, dez dos quais comigo ajudando na busca, comecei a ficar irritada, e até mesmo um pouco preocupada.

– Apareça, Eva. Você ganhou – chamei, pensando onde afinal ela se escondera. Claro, ela conhecia aquele lugar como a palma da mão, e nós não, era lógico que ela encontraria os melhores esconderijos.

Mesmo com nossa rendição, entretanto, ela não apareceu, e retomamos as buscas. Outros dez minutos e eu a localizei num velho galpão, deitada sobre um monte de palha de milho. Parecia desacordada, e na hora fiquei em dúvida se era verdade ou fingimento. Clarice, que entrara no galpão logo atrás de mim, deu um gritinho ao ver Eva caída ali e correu até ela.

– Acorda, Eva, acorda – disse, quase aos soluços, chacoalhando nossa amiga pelos ombros.
Aos poucos, Eva foi abrindo os olhos. Girou a cabeça, como que para ver onde estava.

– O que aconteceu? Você está bem? – interpelou a pequena, antes que ela pudesse falar qualquer coisa.

Eva disse-nos eu não sabia como fora parar ali, e que não ouvira nossos gritos.

– Só me lembro que eu estava procurando um lugar para me esconder, daí senti uma coisa me puxando para trás. Olhei, e não vi nada... Mas ainda estava sendo puxada, como se fosse por um bicho invisível. Desmaiei, e só acordei agora.

Minha amiga contou sua história com tanta convicção que até mesmo eu pensei que podia ser verdade. Entreolhamo-nos as três e, sem mais uma palavra, corremos para fora dali, para bem longe do Bicho Invisível. Quando passávamos pela porta, no entanto, Eva piscou para mim, e entendi: como eu suspeitara a princípio, aquilo era só mais um plano para amedrontar a Clarice. Sorri comigo mesma, impressionada com o talento de atriz da minha amiga, e resolvi incrementar a história assim que surgisse uma oportunidade.

Fomos brincar no outro lado do pátio, bem longe do galpão – já que agora Clarice não queria nem chegar perto dele. A cada pouco tempo, eu ou a Eva dávamos um jeito de desaparecer e de sermos encontradas “desmaiadas”. Sempre, claro, havíamos sido vítimas do Bicho Invisível.

Quando a Clarice não agüentou mais de tanto medo e começou a chorar, ficamos com pena e decidimos parar com aquilo, até porque já estava se tornando repetitivo. Depois de acalmá-la, dizendo que o Bicho Invisível tinha ido embora (nosso arrependimento não era tanto a ponto de contarmos que o tínhamos inventado), propomos brincar nos cipós de uma mata pertinho da velha casa.

A pequena, que adorava pendurar-se nos cipós, ficou um pouco mais animada. Enxugou as lágrimas com a mão e nos olhou, esperançosa:

– Mas o Bicho Invisível foi embora mesmo?

Mal disfarçando o riso, garantimos solenemente que sim, e rumamos as três para o meio das árvores. Passamos uma meia hora muito divertida, cada uma querendo se embalar mais forte do que as outras nos balanços improvisados nos cipós ou pendurando-se como se fosse trapezista. Quando demos por nós, Clarice sumira.

Primeiro ficamos preocupadas, mas depois de procurarmos um pouco Eva sorriu.

– Ela desconfiou que a enganamos e está querendo dar o troco – sussurrou-me ao ouvido.

Eu também achava que podia ser isso, mas mesmo assim estava temerosa. Afinal, éramos as mais velhas, e portanto responsáveis por ela. Fosse o que fosse, deveríamos continuar procurando.Acabamos por encontrá-la mais de cem metros distante de onde estávamos brincando, deitada ao lado de um tronco caído – e desmaiada. Abaixei-me e toquei-a no rosto.

– Clarice, levanta.

Mas a menina não se mexeu. Comecei a ficar com medo. Eva, menos paciente que eu, começou a sacudi-la, levemente a princípio, depois com mais força. Clarice finalmente abriu os olhos, mas parecia em transe. Debatia-se nos nossos braços, estapeando-nos com uma força que não sabíamos que ela possuía.

– O Bicho... O Bicho Invisível... – gritava sem parar.

Foi só a muito custo que conseguimos acalmá-la. Para mim, ela parecia realmente assustada, mas Eva desconfiava seriamente que era tudo fingimento, uma oportunidade que a nossa pequena amiga encontrara para nos dar uns tabefes (merecidos) pelo que fizéramos antes.

– Não tem bicho nenhum – cortou Eva, enquanto praticamente carregávamos Clarice para longe dali.

– Tem sim... Vocês mentiram... Ele não foi embora... – choramingava Clarice. – Ele me pegou quando eu tava procurando um cipó maior para me balançar... me arrastou até lá... e disse que ia voltar depois... para pegar vocês...

Foi o suficiente para nos fazer parar. Mesmo sabendo que não existia bicho nenhum, senti um arrepio. A fedelha falava com tanto medo e tanta certeza! Eva olhou-a com uma cara que achei que ia se enfurecer e dar-lhe um safanão, mas aí ela começou a rir sem parar...

– Você tem cada uma, Clarice... – disse, voltando a andar e praticamente arrastando a menor com ela.

Por algum motivo que até hoje não consigo entender, eu fiquei ali parada vendo-as se afastarem, Clarice chorando, Eva rindo. Era algo surreal. Inventáramos aquilo, e agora eu me sentia amedrontada porque a pequena invertera o jogo e queria nos assustar. Eu até aceitava que Eva conseguisse fingir bem, pois ela tinha uma cara de pau tremenda, mas a Clarice...

Sacudi a cabeça para parar de pensar besteiras e dei um passo na tentativa de alcançá-las, mas parei. Não, fui parada. Era como se alguém, ou algo, me segurasse, puxando-me para trás. Comecei a me debater, mas não adiantou. Gritei, mas minhas amigas já estavam longe, e não me ouviram.

Foi quando eu senti as afiadas unhas do Bicho Invisível rasgando minha pele, e desmaiei.

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