quinta-feira, 18 de junho de 2009

Obama matou a mosca

Maristela Scheuer Deves

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, matou uma mosca. E daí? Daí que a imagem desse gesto tão simples e corriqueiro (quem nunca matou, ou ao menos nunca tentou matar, um desses insetos tão inoportunos?) correu o mundo, virou notícia. Notícia lida, comentada e obrigatória em todas as TVs, sites, jornais, rodas de conversa com os amigos...

Pois é. Nada contra falar da mosca do Obama, eu também falei, e aqui estou escrevendo sobre ela. Confesso que achei engraçadinho até, quando vi a "notícia" sobre isso na TV, ao meio-dia desta quarta-feira. Jornalista que sou, pensei logo que o tema realmente rendia uma materinha ou nota curiosa - afinal, Obama é nada mais, nada menos do que o homem mais poderoso do planeta, e demonstrou uma pontaria certeira ao liquidar com o inseto.

No entanto, o que me assusta é pensar que esse gesto comum e natural, do qual o presidente talvez já tenha até esquecido passadas algumas horas, possa vir a ser outro campeão de acessos na sites de vídeos na internet. Não se trata, repito, de condenar essa curiosidade simples que nos faz querer ver cenas engraçadas ou inusitadas de vez em quando. O que eu estranho é por que essa mesma curiosidade não se repete, na maioria dos casos, quando o que está em pauta são assuntos ditos mais "sérios". Ou alguém aqui acredita que o pacote que o mesmo Obama anunciou nesta mesma quarta-feira, o maior dos EUA desde os anos 1930, terá o mesmo índice de leitura que a mosca?

Da mesma forma, outros assuntos que nós - e por "nós" quero dizer os jornalistas, mas também os intelectuais ou membros de uma camada supostamente detentora de maior conhecimento e cultura - julgamos imprescindíveis muitas vezes são solenemente ignorados pelo público leitor ou telespectador. Que prefere saber quem o ator tal está namorando, quando começam as inscrições para o próximo BBB, quem fez mais gols na rodada de futebol da semana ou simplesmente quem foi que morreu (sim, os obituários continuam figurando entre as seções mais lidas dos jornais, batendo muitas vezes manchetes de economia e política). Ou que Obama, aquele cara do qual se falou tanto quando se elegeu presidente ano passado e que cada pouco está lá no jornal, matou uma mosca.

Isso se repete também na internet, basta ver o que tem mais leitura em sites e blogs. Um exemplo apenas: textos nos quais apareçam, mesmo que incidentalmente, palavras ligadas ao sexo costumam ter índice de leitura várias vezes maior do que outros, mesmo que não sejam tão bem escritos.O que concluir disso tudo? Que o "povo", esse ente ao qual pertencemos mas do qual muitas vezes nos excluímos, está errado? Que só se deve falar de coisas mais sisudas? Ou talvez que devemos deslanchar de vez para o circo pedido pela maioria? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Creio que devemos ter, sim, as duas coisas, o"importante" e o inusitado. Devemos publicar, e ler, uma e outra. Afinal, gostos não se discutem, e a vida é feita tanto de momentos sérios quanto de momentos de riso (que graça teria sem eles?).

O que não deveria ocorrer, apenas, é usar as milhões de opções de coisas "interessantes" que existem por aí como desculpa para não ler ou ver outras coisas que talvez não sejam tão engraçadas ou curiosas ou excitantes, mas que influenciam no nosso dia a dia (como a política ou a economia).

Se você leu este texto até aqui, independente de como chegou até ele, sugiro apenas que reflita sobre esse assunto. Não deixe de ver o vídeo do Obama matando a mosca, eu também vi e gostei, mas tire um tempinho para ler também sobre a crise mundial ou sobre a situação política da sua cidade. Você vai descobrir que isso pode ser igualmente muito interessante.

domingo, 29 de março de 2009

O Admirador – Final: O Enterro

Maristela Scheuer Deves

Chegou ao cemitério às 17h em ponto, e estranhou que não houvesse ninguém lá para o seu enterro. Mesmo assim, caminhou entre os túmulos – que mais pareciam um labirinto – tentando decidir o que fazer. Que local teria ele escolhido para sua cova, perguntou-se, relanceando um olhar ao redor e ainda estranhando a ausência de parentes e amigos. "Apareça", chamou em voz alta, "eu sei que você está aí".

Com um sorriso maquiavélico e um olhar zombeteiro, ele finalmente surgiu no corredor entre as sepulturas, alguns metros adiante. "Bem-vinda, que bom que você veio ao nosso encontro", saudou, num arremedo de cumprimento. Sem responder, ela ficou a olhá-lo, observando cada detalhe. Assim, sem o uniforme, até que ele não era feio, forçou-se a admitir, apesar da crescente aversão. "Então, era você mesmo", disse simplesmente, sem nenhuma emoção.

Ele sorriu novamente. "Demorou a descobrir, heim? Mas, também, quem sou eu para você reparar em mim – seja como homem ou como suspeito? Simplesmente o novo porteiro, aquele que lhe abria a porta do prédio, entregava a correspondência, às vezes ajudava com as compras... Achei que as coisas iam mudar com as flores, mas você continuou a sair com aquele seu namoradinho sem sal! E eu tendo que avisar-lhe toda vez que ele chegava, tendo de ser educado com ele..."

Ela tentou falar, replicar sobre o absurdo disso tudo, mas ele ergueu a mão, interrompendo-a. "Eu jurei que você seria minha, e que, se não fosse, não seria de mais ninguém." Desnorteada, sentindo-se impotente perante a loucura do que ele dizia, sentiu toda a raiva e a coragem anterior abandonando-a. Enquanto lágrimas começavam a vir-lhe aos olhos, deu as costas ao seu tétrico admirador e começou a se afastar em direção à saída do cemitério. Queria ir embora, e só. E foi seu erro.

Mal sentiu quando algo pesado caiu com força sobre sua cabeça, enquanto ouvia-o dizer: "Você acha que eu seria tolo de marcar com você no horário exato? Alterei a hora no jornal que deixei sob a sua porta, os outros só chegam para o enterro daqui a uma meia hora..." Depois, não ouviu nem sentiu mais nada. Se não estivesse desacordada e sedada dentro do caixão que desceu à sepultura às 18h, veria o quanto era querida: enquanto o padre rezava e dizia palavras de consolo, amigos, parentes, colegas de trabalho, namorado, ex-namorado, vizinhos e até mesmo o porteiro do prédio choravam a sua morte.

sábado, 28 de março de 2009

O Admirador - Parte 4: Rostos

(Maristela Scheuer Deves)

Acordou do desmaio deitada na cama e tendo ao lado uma aflita camareira, que não sabia o que fazer com aquela hóspede que desmaiava ao receber uma simples rosa. Por mais que perguntasse, não conseguiu descobrir quem deixara a flor na portaria – mesmo resultado dos inquéritos que fizera quando da entrega dos buquês no seu apartamento. A cabeça ainda girando, questionou-se se valia a pena continuar no hotel, uma vez que o esconderijo fôra descoberto tão facilmente.

Decidida, apanhou a mochila e desceu para fechar a conta. Pensou em almoçar – já era quase meio-dia, o tempo se escoava rapidamente –, mas abandonou a idéia. Sabia que, naquela aflição, nada pararia no seu estômago. Rumou de volta para casa, e, no caminho, jurou que seus últimos resquícios de sanidade tinham se esvaído: o porteiro do hotel, o guarda parado na esquina, o senhor de idade sentado no banco da praça, o taxista, todos pareciam olhá-la de maneira estranha, furtiva, suspeita.

Não foi diferente ao chegar no prédio no qual morava: o homem que saía rapidamente e no qual esbarrou, o zelador, a meia dúzia de vizinhos pelos quais passou no corredor – seria um deles?, perguntava-se ao olhar para cada rosto. Trancou a porta do apê e depois a porta do quarto. Jogou-se na cama, em lágrimas. Não agüentava mais. Acabou adormecendo, e nos sonhos – ou alucinações? – os rostos mais uma vez se sucediam, conhecidos ou desconhecidos, todos ameaçadores.

Acordou com o toque insistente da campainha, e assustou-se ao olhar no relógio: já passava das 16h! Ainda semi-adormecida, olhou pelo olho mágico, mas não havia ninguém no corredor. A dormência evaporou-se como num passe de mágica, os últimos acontecimentos voltando como uma torrente. De repente, um dos rostos do sonho fixou-se na sua mente. Claro!, pensou, começando a tremer mais uma vez. Como não pensara nisso antes? Era óbvio, só podia ser...

Estranhamente reconfortada agora que sabia quem era seu inimigo – sim, tinha certeza, não havia outra alternativa –, sentiu-se calma pela primeira vez em meses. Foi ao banheiro, lavou o rosto, voltou ao quarto e arrumou-se cuidadosamente. Então, saiu rumo ao Cemitério Municipal. O horário do enterro estava chegando, e ela estava decidida a não perder a festa de jeito nenhum.

(amanhã, o último capítulo desta história)

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Admirador - Parte 3: Suspeitos

(Maristela Scheuer Deves)

Sim, decidiu ela. Mesmo com medo, iria ao enterro para ver quem estava lá e como o autor dessa brincadeira mórbida iria se sair sem o seu corpo para sepultar. Acabaria, de uma vez por todas, com o plano dele. "Aliás, já está na hora de descobrir quem ele é", murmurou para si mesma, relembrando, com uma seqüência de calafrios, o desenrolar daquela história.

Desistira de tentar avisar aos pais e aos amigos que estava bem. O melhor a fazer, até a hora de ir ao cemitério, era sumir para que ele não a encontrasse. Só assim estaria segura de que não haveria, mesmo, um cadáver para ser colocado no caixão. Tentando controlar-se, correu ao quarto e pegou uma mochila. Olhou para o celular; melhor não levá-lo, decidiu. Depois de tantos dias trancada em casa, sentiu-se estranha ao pegar o elevador. Notou que o porteiro a olhou espantado, sem responder ao seu cumprimento. "Vai ver achou mesmo que eu estava morta", pensou, desanimada.

Fez sinal a um táxi que passava e deu o endereço de um hotel do outro lado da cidade. Lá, trancou-se no quarto, sentindo-se finalmente segura. Abriu a agenda na intenção de listar possíveis suspeitos, mas, a princípio, não conseguia imaginar ninguém que lhe quisesse fazer mal. A não ser... Não, ele não seria capaz disso! Ou, pelo menos, não teria criatividade para tanto. A idéia, porém, insistia em martelar-lhe a mente: o ex-namorado, com quem terminara após descobrir uma traição e que não aceitara a separação na época. Lembrou-se como ele costumava ligar-lhe sempre, insistentemente, até que decidira trocar o número do telefone...

Mas, não, a solução lhe parecia fácil demais. Tinha de ser outra pessoa. Mas quem? Começou a repassar na mente todos os colegas e ex-colegas de trabalho, os vizinhos do prédio, mesmo os amigos da época de faculdade. Ninguém parecia se encaixar no perfil. Ainda olhava para a página em branco da agenda quando sobressaltou-se com uma batida na porta.

"Encomenda para a senhorita", anunciou a voz que reconheceu como a do rapaz que carregara a sua mochila até o quarto. O já costumeiro arrepio voltou a percorrer-lhe o corpo – afinal, não pedira nada, e ninguém sabia que estava ali. A sensação mostrou-se correta quando abriu a porta e recebeu a rosa vermelha. "Só faltam seis horas. Não falte ao nosso encontro", dizia o cartão.

(continua amanhã)

terça-feira, 24 de março de 2009

O Admirador - Parte 2: Pesadelo?

(Maristela Scheuer Deves)

A noite fora horrível, com pesadelos nos quais poemas de amor se transformavam em tétricas canções de despedida junto a túmulos recém-cobertos. E ela as ouvia de dentro do túmulo, debaixo da terra. Acordou quando tentava gritar que estava viva, e a primeira coisa que percebeu foi o insistente odor das flores – o que só contribuiu para aumentar a sensação de irrealidade. "Estou ficando louca", repetiu para si mesma. Forçou-se a sair da cama e preparou um café, embora não tivesse apetite. Decididamente, não iria trabalhar nesse dia. Há quase uma semana não o fazia, apavorada demais desde que as coroas fúnebres passaram a persegui-la também na empresa.

Terminava de comer seus ovos mexidos quando percebeu o jornal do dia enfiado sob a porta. "Estranho", pensou, lembrando que normalmente precisava buscá-lo na caixa de correspondência do andar térreo. Querendo distrair-se, pegou o jornal e começou a folheá-lo, detendo-se aqui e ali para ler algo que parecia mais interessante. Sem conseguir concentrar-se na leitura, já ia fechar a publicação quando seus olhos bateram num anúncio, colorido, ao pé de uma página: a comunicação de seu próprio falecimento.

O jornal só não caiu de suas mãos porque ela ficou congelada. Olhando para para sua foto (tirada na noite da formatura, recordou), questionou-se se não estava, ainda, sonhando. Mas o papel áspero em suas mãos não deixava dúvidas: ele estava ali, e, em destaque, o anúncio fúnebre em sua homenagem, assinado pelos "amigos que nunca a esquecerão". Rindo histericamente, pensou nos telefones – se eles não estivessem desligados, a essa altura deveriam estar tocando sem parar, em busca da confirmação da notícia.

A mãe! A sua mãe, meu Deus!, deveria estar enlouquecida a sua procura. Correu ao telefone e recolocou-o no gancho, na intenção de discar para a casa dos pais. Antes que o fizesse, no entanto, ele tocou. Do outro lado, em vez de algum conhecido aflito por saber se estava bem, uma voz rouca, desconhecida e algo risonha: "O enterro será às 17h." O fone foi parar no chão, com um estrondo, enquanto a cabeça começava a rodar. A página do jornal, aberta sobre a mesa, confirmava. Seria no Cemitério Municipal.

Deixando-se cair ela mesma numa cadeira, ficou mais de meia hora sem conseguir pensar em nada. Por fim, forçou-se a sair daquela letargia e olhou no relógio: 9h. Faltavam oito horas, então, para o seu próprio sepultamento. Deveria ir ao cemitério? E o que fazer até lá?
(continua amanhã...)

segunda-feira, 23 de março de 2009

O Admirador - Parte 1: As Coroas

(Maristela Scheuer Deves)

Os relâmpagos rasgavam o céu e iluminavam o quarto, apesar das janelas e dos olhos fechados. Os trovões, ecoando ao longe, pareciam chegar cada vez mais perto, enquanto a chuva desabava com força sobre o telhado. Encolhida sob as cobertas, pensou em quando costumava, em noites assim, arrastar o colchão para o quarto dos pais. O pai fazia troça, mas ela se sentia protegida. Agora os pais estavam a centenas de quilômetros de distância, e ela, sozinha no apartamento enorme. E com medo, mais uma vez.

O estrondo de um novo trovão sobressaltou-a e a fez pensar nos ramos bentos que a mãe queimava para acalmar tempestades. Chegou a afastar as cobertas para o lado na intenção de procurar aquele maço de galhos de oliveira, mas, suspirando, abandonou a idéia. Seu medo atual, ela se forçou a admitir, não era causado pelas forças da natureza. Na semi-obscuridade do quarto, lançou um olhar para o fone fora do gancho. O celular, ao lado, também estava desligado havia dias.Se a mãe tentara contatá-la, devia estar preocupada, pensou, fazendo uma anotação mental para ligar-lhe no dia seguinte.

Diria que os telefones estavam com defeito, mas era mentira. A verdade, nua e crua, é que seus nervos não agüentavam mais.Três meses! Ou seriam quatro, já? Não podia entender, agora, como de início achara graça naquilo. Repassou em pensamento a primeira vez que a campainha tocara, o entregador com uma braçada de rosas vermelhas. No cartão, no lugar da esperada assinatura do namorado, apenas um "você ainda vai ser minha" rabiscado em letras maiúsculas. Divertida com a idéia de um admirador secreto, colocara as flores em um vaso, na sala.

Ainda podia sentir o cheiro delas. Não apenas daquelas rosas, mas de todas as outras que vieram depois. E, também, das coroas – as coroas fúnebres que passaram a chegar ao mesmo tempo em que as ligações em que ninguém dizia nada. Arrepiou-se só de lembrar o telefone tocando de madrugada, e ficando mudo quando atendia. Quando aquelas macabras coroas começaram a ser entregues, uma após a outra, dia após dia, com o seu nome gravado, achou que iria enlouquecer. Quem, em nome de Deus, estaria fazendo aquilo? E por quê?

Em princípio tentara considerar tudo como uma brincadeira de mau gosto, mas não dava mais. Contara 47 coroas entregues em seu apartamento nos últimos meses. E, faziam duas semanas, elas passaram a ser entregues também no seu local de trabalho.
(continua amanhã...)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Um anúncio nos classificados

(Maristela Scheuer Deves)

É madrugada. A casa está silenciosa. Mas, não confunda essa quietude com paz: o silêncio pode ser bem mais inquietante do que os sons. Até porque os sons chegam da rua – agitação, carros, movimento, vida. E esse excesso de silêncio aqui dentro, que contrasta com a vida que pulsa lá fora, perturba. Tem outro significado. Estou aqui trancada no meu quarto, fechada à chave, embora o resto da casa esteja quieto e vazio.


Ou não estará tão vazio assim? Apuro os ouvidos. Não, o pior não é ouvir algo; o pior é suportar o silêncio. Que saudades de quando não havia o silêncio, a solidão. Que saudades de quando havia companhia, conversa, risos, gargalhadas. Agora, parece que faz tanto tempo, mas não foi há tanto tempo assim. O riso existia, até aquela manhã fatídica em que resolvi colocar um anúncio nos classificados.


Nunca, antes que tudo acontecesse, imaginei que quatro ou cinco linhas escondidas no meio de um jornal pudessem ter um efeito tão devastador. Nem mesmo agora, depois de ter sofrido na pele as conseqüências da minha boa-fé, consigo acreditar inteiramente que foi verdade. Afinal, como pode ter sido possível? Tudo começou quanto uma das garotas com quem dividia o apartamento resolveu mudar-se para outro estado para casar. O aluguel, devido à localização privilegiada e ao tamanho do imóvel, era muito alto para dividirmos apenas entre duas, e resolvemos colocar um anúncio nos classificados: “Procura-se moça para dividir apartamento central, mobiliado, com quarto individual. Tratar pelo fone...”


Como esperávamos, choveram ligações de pessoas interessadas. Descontados os homens que ligaram – apesar de o anúncio dizer “moça”, alguns insistiam para que abríssemos uma exceção -, ainda sobraram umas sete ou oito candidatas que ficaram de aparecer entre aquele dia e o seguinte para dar uma olhada no local. Satisfeitas, eu e Ieda, minha colega de moradia, nos revezamos para atender a todas: ela ficaria em casa naquela manhã, e eu, à tarde.

Qual não foi minha surpresa ao chegar em casa, ao meio-dia, e descobrir que ninguém que marcara aparecera até então. Algumas tinham ligado desmarcando, ou jogando a visita para a tarde, e duas sequer tinham dado satisfação. À tarde, tudo se repetiu. Ou a interessada descobria que tinha um compromisso não-lembrado, ou surgia um impecilho de última hora, ou simplesmente não aparecia. O mesmo aconteceu no dia seguinte, e no outro também. Resolvi repetir o anúncio no sábado, rezando para que dessa vez desse tudo certo. Afinal, os dias iam correndo, e o aluguel também...

Quando o telefone tocou no sábado cedinho, corri atender. Ao ouvir uma voz desconhecida do outro lado, cruzei os dedos na torcida. Seu nome era Luíza, e queria ver o apartamento. Tinha pressa em encontrar um lugar, estava vindo de outra cidade, com emprego arrumado, começava na segunda-feira. Será que poderia vir naquela manhã, não seria incômodo para nós? Quase pulei de alegria ao desligar, e prometi comparecer na missa no outro dia se tudo ficasse acertado com a nova inquilina.


Se eu tivesse pensado, então, naquela frase que diz para termos cuidado com o que pedimos, pois podemos ser atendidos! Agora, penso que teria sido melhor eu e minha amiga termos dividido o aluguel apenas entre nós. Teríamos saído da história com menos prejuízos – financeiros, físicos e mentais. Mas, naquele momento, minha única preocupação era preencher o lugar vago. Quem me dera a preocupação tivesse continuado essa!


No almoço, abrimos aquela garrafa de vinho guardada há tanto tempo. Afinal, depois de dias de angústia, precisávamos comemorar. Luíza se mudaria naquela tarde mesmo, já tinha mandado buscar as coisas que estavam na casa da tia, numa cidade vizinha. Aproveitamos o dia livre e demos uma “geral” na casa para deixá-la brilhante para a chegada da futura colega. Até flores nós colocamos no vaso da sala. Hoje eu sei porque elas murcharam tão rápido...


Tudo correu como nós esperávamos. Pelo menos – e tão somente, devo confessar – naquele primeiro final de semana. A nova moradora apareceu no final da tarde, trazendo suas coisas. Com a bagagem, trouxe também uma profusão de enfeites exóticos, que iam de arranjos com cabeças de alho a cristais e queimadores de incenso. Mesmo não gostando do cheiro desse último produto, fiquei na minha; afinal, precisava que ela ficasse, e desde que queimasse os ditos no seu quarto, não teria por que me incomodar. Se eu ao menos desconfiasse!


Menos de uma semana se passara quando os problemas começaram – leves, a princípio. Na sexta-feira seguinte, a Ieda me ligou, furiosa, dizendo que a outra tivera a cara de pau de lhe dizer que não gostava de visitas entrando e saindo de casa – e isso só porque Ieda estava por receber os pais, que viriam de sua cidade natal para passar ali um feriado. Suspirei e sugeri que não desse bola, afinal, uma recém-chegada não poderia começar a ditar as normas da casa.


Nos dias seguintes, entretanto, o clima começou a esquentar. Primeiro foi a reclamação da Ieda de que a Luíza estava deixando a casa impregnada de cheiro de incenso. Logo a seguir foi um cartaz manuscrito pela Luíza, pregado na parede do banheiro e pedindo que, por favor, não deixássemos mais o tapete do banheiro virado. Seguiram-se as velas acesas pela casa, mesmo quando ninguém estava por perto para cuidar (“Vai incendiar tudo, pelo amor de Deus!”, dizia a minha colega mais antiga, querendo apagar tudo de uma vez). “Isso vai passar, é só uma fase, as coisas vão melhorar”, eu pregava a mim mesma – sem, contudo, conseguir me convencer.

Um mês já se passara e eu estava com os nervos à flor da pele. Se aquelas duas continuassem a brigar, eu ia acabar botando as duas para fora de casa, ah, se ia! Mas, se eu pensava que as coisas estavam ruins, descobri que ainda podiam piorar. O cúmulo foi quando fui chamada na portaria do meu local de trabalho, certa tarde, para atender à Ieda – que, aos prantos, dizia que não voltava mais para o apartamento porque a outra a acusara de cortar em pedacinhos as roupas que estavam no varal.

Pedindo paciência aos céus, consegui dispensa do serviço para ir mais cedo para casa resolver a questão. Lá, Luíza esperava com toda a calma – e com uma blusa aos frangalhos, como prova – para reafirmar que a Ieda (ou seria eu?, questionou) detonara suas roupas. Motivo? “Inveja, ou drogas”, esclareceu. De nada adiantou tentar argumentar que ninguém fizera nada, que eu conhecia Ieda há anos e que colocaria a minha mão no fogo por ela.Eram as drogas, Luíza insistia. Que drogas, pelo amor de Deus?, eu quis saber. Ora, desde que chegara no apartamento tinha sentido o cheiro de éter, e sabia bem o que era aquele pozinho branco que encontrara num canto... Não aguentei mais. “Ora, o único pó que tem pelos cantos é a cinza dos teus incensos, que deixam toda a casa com esse cheiro horroroso!”

Foi tocar numa ferida. Pois então, nós não gostávamos do seu incenso? E quem é que andava apagando as velas que ela acendia? Será que não víamos que o apartamento estava carregado, precisava ser limpo do que tinha de ruim? Segurei-me para não dizer o que pensava, respirei fundo e declarei que, se tinha algo de errado com o lugar, que os incomodados se retirassem. Nós queríamos paz, que era o que tínhamos antes dela chegar.

Horas de discussão depois, chegamos a um acordo: ela ficaria somente até o próximo final de mês, para ter tempo de conseguir um novo lugar, e então se mudaria. As coisas pareciam que finalmente iriam se ajeitar, e eu passei logo a procurar uma nova companheira. Menos de uma semana depois, no entanto, veio a bomba: Ieda perdera o emprego, e, sem dinheiro, precisaria voltar para a casa dos pais.

Cansada, deprimida (justo ela, que sempre fôra uma pessoa que transpirava alegria), até mesmo um pouco mais magra, minha amiga mudou-se quando o mês terminou. Como resultado, acabei aceitando que Luíza continuasse mais um tempo, pois só conseguira uma outra inquilina, e, se ela saísse, precisaria de duas. O único lado bom – ou foi o que eu pensei então – foi que Luíza parecia aceitar melhor Angelise, a minha colega de trabalho que viera morar ali.

Mas se eu esperava que as coisas se acalmassem, enganei-me redondamente. Em poucos dias o namorado de Angelise, Roberto, virou o novo alvo. “O que é que ele faz aqui o tempo todo?”, reclamava Luíza, em princípio para mim. Poucas semanas depois, Angelise veio até mim relatar que encontrara, no canto do seu quarto, incenso queimado. “Tudo bem que ela seja mística e use incenso, mas no meu quarto? Por que não faz isso no dela?”, indignou-se. E a confusão estava armada novamente.


Nesse meio tempo, recebi uma notícia que me deixou triste e afastou os pensamentos dos problemas domésticos: Ieda, a amiga que se mudara há menos de um mês, estava no hospital. “Ninguém sabe o que ela tem”, contou-me sua mãe, que ligou para dar a notícia. Simplesmente emagrecera e emagrecera depois de perder o emprego, e só chorava pelos cantos. Fui vê-la, mas não pudemos conversar porque ela delirava de febre. “Chama muito por você e pede que tenha cuidado”, relatou o pai, sem saber explicar a que cuidados a filha se referia – alucinação causada pela febre, provavelmente.

Em casa, além das já corriqueiras brigas, outra coisa ia mal: minhas flores, cultivadas com todo o carinho, haviam começado a murchar e não havia jeito de recuperá-las. E para completar a fase ruim, uma noite Angelise chegou e relatou que fôra despedida. Não iria embora imediatamente, mas, se não conseguisse logo outro emprego, seria obrigada a fazê-lo.


Sem acreditar na seqüência de maus momentos, tomei uma decisão. Fui à igreja e pedi ao padre um vidro grande de água benta. “Preciso benzer o meu apartamento, padre”, expliquei. Chegando em casa, passei de cômodo em cômodo aspergindo a água. Só não consegui entrar no quarto de Luíza, que estava fechado à chave. Tentei-o no dia seguinte, bati na porta, chamei, e nada. Uma semana depois, sem ter notícias da colega, eu e Angelise resolvemos tomar uma medida drástica: arrombamos o quarto.


Lá dentro, o vazio. Não havia ninguém. Nem nada. Nem Luíza, nem uma cama, nem uma peça de roupa, nem o dinheiro do aluguel que venceria em poucos dias. Apenas um incenso ardia no canto, já quase no final. Entreolhamo-nos sem saber o que fazer, mas quase que aliviadas. Quando vimos, falamos quase ao mesmo tempo: “Agora, vamos ficar só nós duas.”

Benzido também aquele quarto, agora deixado vago, as coisas pareciam ter melhorado. Angelise foi chamada para uma entrevista de emprego, e esperava a resposta para dali a poucos dias. Luíza não dera mais sinal, nem atendia ao telefone. Preferi perder o dinheiro do aluguel do que incomodar-me mais, e resolvi deixar as coisas assim mesmo.

Mas, não estava tudo acabado como eu pensava. Dez noites atrás, acordei com um estranho silêncio na casa. Por baixo da porta do quarto, uma luz se infiltrava. Levantei e fui até a sala. Uma dezena de velas, de todos os tamanhos e cores, ardia no cômodo. Paralisada, dei um grito. Angelise acudiu, e, à luz das velas, pude ver seus olhos fundos de choro. Não, não fôra ela quem acendera as velas. Estava deitada desde que chegara em casa, após receber um não da empresa na qual esperava trabalhar.


Mandamos trocar as fechaduras das portas – só então nos lembramos de que Luíza não devolvera as chaves. Mesmo com a troca, não conseguimos nos acalmar. Acabaram as conversas animadas antes de dormir. Começamos a ficar nervosas com cada barulho estranho no meio da noite. Ontem à tarde, ao escavar os vasos de flores para colocar adubo e ver se as plantas reagiam, Angelise encontrou enterrados vários papéis. Com os nossos nomes, e o de Ieda, escritos e riscados.


Precisei deixar minha amiga em uma clínica, para que se recuperasse do ataque de nervos. Não, não foram só as velas ou os papéis que causaram a sua crise. Foi a notícia, que chegou à noite, de que Ieda morreu no hospital. Ninguém sabe de que. E agora Angelise está internada, chorando copiosamente. E eu estou aqui, trancada no meu quarto, embaixo das cobertas, sem conseguir dormir. Atenta ao menor ruído. Ou ao silêncio que cai sobre a casa, e que eu preferia que fosse cheio de sons...