domingo, 29 de março de 2009

O Admirador – Final: O Enterro

Maristela Scheuer Deves

Chegou ao cemitério às 17h em ponto, e estranhou que não houvesse ninguém lá para o seu enterro. Mesmo assim, caminhou entre os túmulos – que mais pareciam um labirinto – tentando decidir o que fazer. Que local teria ele escolhido para sua cova, perguntou-se, relanceando um olhar ao redor e ainda estranhando a ausência de parentes e amigos. "Apareça", chamou em voz alta, "eu sei que você está aí".

Com um sorriso maquiavélico e um olhar zombeteiro, ele finalmente surgiu no corredor entre as sepulturas, alguns metros adiante. "Bem-vinda, que bom que você veio ao nosso encontro", saudou, num arremedo de cumprimento. Sem responder, ela ficou a olhá-lo, observando cada detalhe. Assim, sem o uniforme, até que ele não era feio, forçou-se a admitir, apesar da crescente aversão. "Então, era você mesmo", disse simplesmente, sem nenhuma emoção.

Ele sorriu novamente. "Demorou a descobrir, heim? Mas, também, quem sou eu para você reparar em mim – seja como homem ou como suspeito? Simplesmente o novo porteiro, aquele que lhe abria a porta do prédio, entregava a correspondência, às vezes ajudava com as compras... Achei que as coisas iam mudar com as flores, mas você continuou a sair com aquele seu namoradinho sem sal! E eu tendo que avisar-lhe toda vez que ele chegava, tendo de ser educado com ele..."

Ela tentou falar, replicar sobre o absurdo disso tudo, mas ele ergueu a mão, interrompendo-a. "Eu jurei que você seria minha, e que, se não fosse, não seria de mais ninguém." Desnorteada, sentindo-se impotente perante a loucura do que ele dizia, sentiu toda a raiva e a coragem anterior abandonando-a. Enquanto lágrimas começavam a vir-lhe aos olhos, deu as costas ao seu tétrico admirador e começou a se afastar em direção à saída do cemitério. Queria ir embora, e só. E foi seu erro.

Mal sentiu quando algo pesado caiu com força sobre sua cabeça, enquanto ouvia-o dizer: "Você acha que eu seria tolo de marcar com você no horário exato? Alterei a hora no jornal que deixei sob a sua porta, os outros só chegam para o enterro daqui a uma meia hora..." Depois, não ouviu nem sentiu mais nada. Se não estivesse desacordada e sedada dentro do caixão que desceu à sepultura às 18h, veria o quanto era querida: enquanto o padre rezava e dizia palavras de consolo, amigos, parentes, colegas de trabalho, namorado, ex-namorado, vizinhos e até mesmo o porteiro do prédio choravam a sua morte.

sábado, 28 de março de 2009

O Admirador - Parte 4: Rostos

(Maristela Scheuer Deves)

Acordou do desmaio deitada na cama e tendo ao lado uma aflita camareira, que não sabia o que fazer com aquela hóspede que desmaiava ao receber uma simples rosa. Por mais que perguntasse, não conseguiu descobrir quem deixara a flor na portaria – mesmo resultado dos inquéritos que fizera quando da entrega dos buquês no seu apartamento. A cabeça ainda girando, questionou-se se valia a pena continuar no hotel, uma vez que o esconderijo fôra descoberto tão facilmente.

Decidida, apanhou a mochila e desceu para fechar a conta. Pensou em almoçar – já era quase meio-dia, o tempo se escoava rapidamente –, mas abandonou a idéia. Sabia que, naquela aflição, nada pararia no seu estômago. Rumou de volta para casa, e, no caminho, jurou que seus últimos resquícios de sanidade tinham se esvaído: o porteiro do hotel, o guarda parado na esquina, o senhor de idade sentado no banco da praça, o taxista, todos pareciam olhá-la de maneira estranha, furtiva, suspeita.

Não foi diferente ao chegar no prédio no qual morava: o homem que saía rapidamente e no qual esbarrou, o zelador, a meia dúzia de vizinhos pelos quais passou no corredor – seria um deles?, perguntava-se ao olhar para cada rosto. Trancou a porta do apê e depois a porta do quarto. Jogou-se na cama, em lágrimas. Não agüentava mais. Acabou adormecendo, e nos sonhos – ou alucinações? – os rostos mais uma vez se sucediam, conhecidos ou desconhecidos, todos ameaçadores.

Acordou com o toque insistente da campainha, e assustou-se ao olhar no relógio: já passava das 16h! Ainda semi-adormecida, olhou pelo olho mágico, mas não havia ninguém no corredor. A dormência evaporou-se como num passe de mágica, os últimos acontecimentos voltando como uma torrente. De repente, um dos rostos do sonho fixou-se na sua mente. Claro!, pensou, começando a tremer mais uma vez. Como não pensara nisso antes? Era óbvio, só podia ser...

Estranhamente reconfortada agora que sabia quem era seu inimigo – sim, tinha certeza, não havia outra alternativa –, sentiu-se calma pela primeira vez em meses. Foi ao banheiro, lavou o rosto, voltou ao quarto e arrumou-se cuidadosamente. Então, saiu rumo ao Cemitério Municipal. O horário do enterro estava chegando, e ela estava decidida a não perder a festa de jeito nenhum.

(amanhã, o último capítulo desta história)

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Admirador - Parte 3: Suspeitos

(Maristela Scheuer Deves)

Sim, decidiu ela. Mesmo com medo, iria ao enterro para ver quem estava lá e como o autor dessa brincadeira mórbida iria se sair sem o seu corpo para sepultar. Acabaria, de uma vez por todas, com o plano dele. "Aliás, já está na hora de descobrir quem ele é", murmurou para si mesma, relembrando, com uma seqüência de calafrios, o desenrolar daquela história.

Desistira de tentar avisar aos pais e aos amigos que estava bem. O melhor a fazer, até a hora de ir ao cemitério, era sumir para que ele não a encontrasse. Só assim estaria segura de que não haveria, mesmo, um cadáver para ser colocado no caixão. Tentando controlar-se, correu ao quarto e pegou uma mochila. Olhou para o celular; melhor não levá-lo, decidiu. Depois de tantos dias trancada em casa, sentiu-se estranha ao pegar o elevador. Notou que o porteiro a olhou espantado, sem responder ao seu cumprimento. "Vai ver achou mesmo que eu estava morta", pensou, desanimada.

Fez sinal a um táxi que passava e deu o endereço de um hotel do outro lado da cidade. Lá, trancou-se no quarto, sentindo-se finalmente segura. Abriu a agenda na intenção de listar possíveis suspeitos, mas, a princípio, não conseguia imaginar ninguém que lhe quisesse fazer mal. A não ser... Não, ele não seria capaz disso! Ou, pelo menos, não teria criatividade para tanto. A idéia, porém, insistia em martelar-lhe a mente: o ex-namorado, com quem terminara após descobrir uma traição e que não aceitara a separação na época. Lembrou-se como ele costumava ligar-lhe sempre, insistentemente, até que decidira trocar o número do telefone...

Mas, não, a solução lhe parecia fácil demais. Tinha de ser outra pessoa. Mas quem? Começou a repassar na mente todos os colegas e ex-colegas de trabalho, os vizinhos do prédio, mesmo os amigos da época de faculdade. Ninguém parecia se encaixar no perfil. Ainda olhava para a página em branco da agenda quando sobressaltou-se com uma batida na porta.

"Encomenda para a senhorita", anunciou a voz que reconheceu como a do rapaz que carregara a sua mochila até o quarto. O já costumeiro arrepio voltou a percorrer-lhe o corpo – afinal, não pedira nada, e ninguém sabia que estava ali. A sensação mostrou-se correta quando abriu a porta e recebeu a rosa vermelha. "Só faltam seis horas. Não falte ao nosso encontro", dizia o cartão.

(continua amanhã)

terça-feira, 24 de março de 2009

O Admirador - Parte 2: Pesadelo?

(Maristela Scheuer Deves)

A noite fora horrível, com pesadelos nos quais poemas de amor se transformavam em tétricas canções de despedida junto a túmulos recém-cobertos. E ela as ouvia de dentro do túmulo, debaixo da terra. Acordou quando tentava gritar que estava viva, e a primeira coisa que percebeu foi o insistente odor das flores – o que só contribuiu para aumentar a sensação de irrealidade. "Estou ficando louca", repetiu para si mesma. Forçou-se a sair da cama e preparou um café, embora não tivesse apetite. Decididamente, não iria trabalhar nesse dia. Há quase uma semana não o fazia, apavorada demais desde que as coroas fúnebres passaram a persegui-la também na empresa.

Terminava de comer seus ovos mexidos quando percebeu o jornal do dia enfiado sob a porta. "Estranho", pensou, lembrando que normalmente precisava buscá-lo na caixa de correspondência do andar térreo. Querendo distrair-se, pegou o jornal e começou a folheá-lo, detendo-se aqui e ali para ler algo que parecia mais interessante. Sem conseguir concentrar-se na leitura, já ia fechar a publicação quando seus olhos bateram num anúncio, colorido, ao pé de uma página: a comunicação de seu próprio falecimento.

O jornal só não caiu de suas mãos porque ela ficou congelada. Olhando para para sua foto (tirada na noite da formatura, recordou), questionou-se se não estava, ainda, sonhando. Mas o papel áspero em suas mãos não deixava dúvidas: ele estava ali, e, em destaque, o anúncio fúnebre em sua homenagem, assinado pelos "amigos que nunca a esquecerão". Rindo histericamente, pensou nos telefones – se eles não estivessem desligados, a essa altura deveriam estar tocando sem parar, em busca da confirmação da notícia.

A mãe! A sua mãe, meu Deus!, deveria estar enlouquecida a sua procura. Correu ao telefone e recolocou-o no gancho, na intenção de discar para a casa dos pais. Antes que o fizesse, no entanto, ele tocou. Do outro lado, em vez de algum conhecido aflito por saber se estava bem, uma voz rouca, desconhecida e algo risonha: "O enterro será às 17h." O fone foi parar no chão, com um estrondo, enquanto a cabeça começava a rodar. A página do jornal, aberta sobre a mesa, confirmava. Seria no Cemitério Municipal.

Deixando-se cair ela mesma numa cadeira, ficou mais de meia hora sem conseguir pensar em nada. Por fim, forçou-se a sair daquela letargia e olhou no relógio: 9h. Faltavam oito horas, então, para o seu próprio sepultamento. Deveria ir ao cemitério? E o que fazer até lá?
(continua amanhã...)

segunda-feira, 23 de março de 2009

O Admirador - Parte 1: As Coroas

(Maristela Scheuer Deves)

Os relâmpagos rasgavam o céu e iluminavam o quarto, apesar das janelas e dos olhos fechados. Os trovões, ecoando ao longe, pareciam chegar cada vez mais perto, enquanto a chuva desabava com força sobre o telhado. Encolhida sob as cobertas, pensou em quando costumava, em noites assim, arrastar o colchão para o quarto dos pais. O pai fazia troça, mas ela se sentia protegida. Agora os pais estavam a centenas de quilômetros de distância, e ela, sozinha no apartamento enorme. E com medo, mais uma vez.

O estrondo de um novo trovão sobressaltou-a e a fez pensar nos ramos bentos que a mãe queimava para acalmar tempestades. Chegou a afastar as cobertas para o lado na intenção de procurar aquele maço de galhos de oliveira, mas, suspirando, abandonou a idéia. Seu medo atual, ela se forçou a admitir, não era causado pelas forças da natureza. Na semi-obscuridade do quarto, lançou um olhar para o fone fora do gancho. O celular, ao lado, também estava desligado havia dias.Se a mãe tentara contatá-la, devia estar preocupada, pensou, fazendo uma anotação mental para ligar-lhe no dia seguinte.

Diria que os telefones estavam com defeito, mas era mentira. A verdade, nua e crua, é que seus nervos não agüentavam mais.Três meses! Ou seriam quatro, já? Não podia entender, agora, como de início achara graça naquilo. Repassou em pensamento a primeira vez que a campainha tocara, o entregador com uma braçada de rosas vermelhas. No cartão, no lugar da esperada assinatura do namorado, apenas um "você ainda vai ser minha" rabiscado em letras maiúsculas. Divertida com a idéia de um admirador secreto, colocara as flores em um vaso, na sala.

Ainda podia sentir o cheiro delas. Não apenas daquelas rosas, mas de todas as outras que vieram depois. E, também, das coroas – as coroas fúnebres que passaram a chegar ao mesmo tempo em que as ligações em que ninguém dizia nada. Arrepiou-se só de lembrar o telefone tocando de madrugada, e ficando mudo quando atendia. Quando aquelas macabras coroas começaram a ser entregues, uma após a outra, dia após dia, com o seu nome gravado, achou que iria enlouquecer. Quem, em nome de Deus, estaria fazendo aquilo? E por quê?

Em princípio tentara considerar tudo como uma brincadeira de mau gosto, mas não dava mais. Contara 47 coroas entregues em seu apartamento nos últimos meses. E, faziam duas semanas, elas passaram a ser entregues também no seu local de trabalho.
(continua amanhã...)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Um anúncio nos classificados

(Maristela Scheuer Deves)

É madrugada. A casa está silenciosa. Mas, não confunda essa quietude com paz: o silêncio pode ser bem mais inquietante do que os sons. Até porque os sons chegam da rua – agitação, carros, movimento, vida. E esse excesso de silêncio aqui dentro, que contrasta com a vida que pulsa lá fora, perturba. Tem outro significado. Estou aqui trancada no meu quarto, fechada à chave, embora o resto da casa esteja quieto e vazio.


Ou não estará tão vazio assim? Apuro os ouvidos. Não, o pior não é ouvir algo; o pior é suportar o silêncio. Que saudades de quando não havia o silêncio, a solidão. Que saudades de quando havia companhia, conversa, risos, gargalhadas. Agora, parece que faz tanto tempo, mas não foi há tanto tempo assim. O riso existia, até aquela manhã fatídica em que resolvi colocar um anúncio nos classificados.


Nunca, antes que tudo acontecesse, imaginei que quatro ou cinco linhas escondidas no meio de um jornal pudessem ter um efeito tão devastador. Nem mesmo agora, depois de ter sofrido na pele as conseqüências da minha boa-fé, consigo acreditar inteiramente que foi verdade. Afinal, como pode ter sido possível? Tudo começou quanto uma das garotas com quem dividia o apartamento resolveu mudar-se para outro estado para casar. O aluguel, devido à localização privilegiada e ao tamanho do imóvel, era muito alto para dividirmos apenas entre duas, e resolvemos colocar um anúncio nos classificados: “Procura-se moça para dividir apartamento central, mobiliado, com quarto individual. Tratar pelo fone...”


Como esperávamos, choveram ligações de pessoas interessadas. Descontados os homens que ligaram – apesar de o anúncio dizer “moça”, alguns insistiam para que abríssemos uma exceção -, ainda sobraram umas sete ou oito candidatas que ficaram de aparecer entre aquele dia e o seguinte para dar uma olhada no local. Satisfeitas, eu e Ieda, minha colega de moradia, nos revezamos para atender a todas: ela ficaria em casa naquela manhã, e eu, à tarde.

Qual não foi minha surpresa ao chegar em casa, ao meio-dia, e descobrir que ninguém que marcara aparecera até então. Algumas tinham ligado desmarcando, ou jogando a visita para a tarde, e duas sequer tinham dado satisfação. À tarde, tudo se repetiu. Ou a interessada descobria que tinha um compromisso não-lembrado, ou surgia um impecilho de última hora, ou simplesmente não aparecia. O mesmo aconteceu no dia seguinte, e no outro também. Resolvi repetir o anúncio no sábado, rezando para que dessa vez desse tudo certo. Afinal, os dias iam correndo, e o aluguel também...

Quando o telefone tocou no sábado cedinho, corri atender. Ao ouvir uma voz desconhecida do outro lado, cruzei os dedos na torcida. Seu nome era Luíza, e queria ver o apartamento. Tinha pressa em encontrar um lugar, estava vindo de outra cidade, com emprego arrumado, começava na segunda-feira. Será que poderia vir naquela manhã, não seria incômodo para nós? Quase pulei de alegria ao desligar, e prometi comparecer na missa no outro dia se tudo ficasse acertado com a nova inquilina.


Se eu tivesse pensado, então, naquela frase que diz para termos cuidado com o que pedimos, pois podemos ser atendidos! Agora, penso que teria sido melhor eu e minha amiga termos dividido o aluguel apenas entre nós. Teríamos saído da história com menos prejuízos – financeiros, físicos e mentais. Mas, naquele momento, minha única preocupação era preencher o lugar vago. Quem me dera a preocupação tivesse continuado essa!


No almoço, abrimos aquela garrafa de vinho guardada há tanto tempo. Afinal, depois de dias de angústia, precisávamos comemorar. Luíza se mudaria naquela tarde mesmo, já tinha mandado buscar as coisas que estavam na casa da tia, numa cidade vizinha. Aproveitamos o dia livre e demos uma “geral” na casa para deixá-la brilhante para a chegada da futura colega. Até flores nós colocamos no vaso da sala. Hoje eu sei porque elas murcharam tão rápido...


Tudo correu como nós esperávamos. Pelo menos – e tão somente, devo confessar – naquele primeiro final de semana. A nova moradora apareceu no final da tarde, trazendo suas coisas. Com a bagagem, trouxe também uma profusão de enfeites exóticos, que iam de arranjos com cabeças de alho a cristais e queimadores de incenso. Mesmo não gostando do cheiro desse último produto, fiquei na minha; afinal, precisava que ela ficasse, e desde que queimasse os ditos no seu quarto, não teria por que me incomodar. Se eu ao menos desconfiasse!


Menos de uma semana se passara quando os problemas começaram – leves, a princípio. Na sexta-feira seguinte, a Ieda me ligou, furiosa, dizendo que a outra tivera a cara de pau de lhe dizer que não gostava de visitas entrando e saindo de casa – e isso só porque Ieda estava por receber os pais, que viriam de sua cidade natal para passar ali um feriado. Suspirei e sugeri que não desse bola, afinal, uma recém-chegada não poderia começar a ditar as normas da casa.


Nos dias seguintes, entretanto, o clima começou a esquentar. Primeiro foi a reclamação da Ieda de que a Luíza estava deixando a casa impregnada de cheiro de incenso. Logo a seguir foi um cartaz manuscrito pela Luíza, pregado na parede do banheiro e pedindo que, por favor, não deixássemos mais o tapete do banheiro virado. Seguiram-se as velas acesas pela casa, mesmo quando ninguém estava por perto para cuidar (“Vai incendiar tudo, pelo amor de Deus!”, dizia a minha colega mais antiga, querendo apagar tudo de uma vez). “Isso vai passar, é só uma fase, as coisas vão melhorar”, eu pregava a mim mesma – sem, contudo, conseguir me convencer.

Um mês já se passara e eu estava com os nervos à flor da pele. Se aquelas duas continuassem a brigar, eu ia acabar botando as duas para fora de casa, ah, se ia! Mas, se eu pensava que as coisas estavam ruins, descobri que ainda podiam piorar. O cúmulo foi quando fui chamada na portaria do meu local de trabalho, certa tarde, para atender à Ieda – que, aos prantos, dizia que não voltava mais para o apartamento porque a outra a acusara de cortar em pedacinhos as roupas que estavam no varal.

Pedindo paciência aos céus, consegui dispensa do serviço para ir mais cedo para casa resolver a questão. Lá, Luíza esperava com toda a calma – e com uma blusa aos frangalhos, como prova – para reafirmar que a Ieda (ou seria eu?, questionou) detonara suas roupas. Motivo? “Inveja, ou drogas”, esclareceu. De nada adiantou tentar argumentar que ninguém fizera nada, que eu conhecia Ieda há anos e que colocaria a minha mão no fogo por ela.Eram as drogas, Luíza insistia. Que drogas, pelo amor de Deus?, eu quis saber. Ora, desde que chegara no apartamento tinha sentido o cheiro de éter, e sabia bem o que era aquele pozinho branco que encontrara num canto... Não aguentei mais. “Ora, o único pó que tem pelos cantos é a cinza dos teus incensos, que deixam toda a casa com esse cheiro horroroso!”

Foi tocar numa ferida. Pois então, nós não gostávamos do seu incenso? E quem é que andava apagando as velas que ela acendia? Será que não víamos que o apartamento estava carregado, precisava ser limpo do que tinha de ruim? Segurei-me para não dizer o que pensava, respirei fundo e declarei que, se tinha algo de errado com o lugar, que os incomodados se retirassem. Nós queríamos paz, que era o que tínhamos antes dela chegar.

Horas de discussão depois, chegamos a um acordo: ela ficaria somente até o próximo final de mês, para ter tempo de conseguir um novo lugar, e então se mudaria. As coisas pareciam que finalmente iriam se ajeitar, e eu passei logo a procurar uma nova companheira. Menos de uma semana depois, no entanto, veio a bomba: Ieda perdera o emprego, e, sem dinheiro, precisaria voltar para a casa dos pais.

Cansada, deprimida (justo ela, que sempre fôra uma pessoa que transpirava alegria), até mesmo um pouco mais magra, minha amiga mudou-se quando o mês terminou. Como resultado, acabei aceitando que Luíza continuasse mais um tempo, pois só conseguira uma outra inquilina, e, se ela saísse, precisaria de duas. O único lado bom – ou foi o que eu pensei então – foi que Luíza parecia aceitar melhor Angelise, a minha colega de trabalho que viera morar ali.

Mas se eu esperava que as coisas se acalmassem, enganei-me redondamente. Em poucos dias o namorado de Angelise, Roberto, virou o novo alvo. “O que é que ele faz aqui o tempo todo?”, reclamava Luíza, em princípio para mim. Poucas semanas depois, Angelise veio até mim relatar que encontrara, no canto do seu quarto, incenso queimado. “Tudo bem que ela seja mística e use incenso, mas no meu quarto? Por que não faz isso no dela?”, indignou-se. E a confusão estava armada novamente.


Nesse meio tempo, recebi uma notícia que me deixou triste e afastou os pensamentos dos problemas domésticos: Ieda, a amiga que se mudara há menos de um mês, estava no hospital. “Ninguém sabe o que ela tem”, contou-me sua mãe, que ligou para dar a notícia. Simplesmente emagrecera e emagrecera depois de perder o emprego, e só chorava pelos cantos. Fui vê-la, mas não pudemos conversar porque ela delirava de febre. “Chama muito por você e pede que tenha cuidado”, relatou o pai, sem saber explicar a que cuidados a filha se referia – alucinação causada pela febre, provavelmente.

Em casa, além das já corriqueiras brigas, outra coisa ia mal: minhas flores, cultivadas com todo o carinho, haviam começado a murchar e não havia jeito de recuperá-las. E para completar a fase ruim, uma noite Angelise chegou e relatou que fôra despedida. Não iria embora imediatamente, mas, se não conseguisse logo outro emprego, seria obrigada a fazê-lo.


Sem acreditar na seqüência de maus momentos, tomei uma decisão. Fui à igreja e pedi ao padre um vidro grande de água benta. “Preciso benzer o meu apartamento, padre”, expliquei. Chegando em casa, passei de cômodo em cômodo aspergindo a água. Só não consegui entrar no quarto de Luíza, que estava fechado à chave. Tentei-o no dia seguinte, bati na porta, chamei, e nada. Uma semana depois, sem ter notícias da colega, eu e Angelise resolvemos tomar uma medida drástica: arrombamos o quarto.


Lá dentro, o vazio. Não havia ninguém. Nem nada. Nem Luíza, nem uma cama, nem uma peça de roupa, nem o dinheiro do aluguel que venceria em poucos dias. Apenas um incenso ardia no canto, já quase no final. Entreolhamo-nos sem saber o que fazer, mas quase que aliviadas. Quando vimos, falamos quase ao mesmo tempo: “Agora, vamos ficar só nós duas.”

Benzido também aquele quarto, agora deixado vago, as coisas pareciam ter melhorado. Angelise foi chamada para uma entrevista de emprego, e esperava a resposta para dali a poucos dias. Luíza não dera mais sinal, nem atendia ao telefone. Preferi perder o dinheiro do aluguel do que incomodar-me mais, e resolvi deixar as coisas assim mesmo.

Mas, não estava tudo acabado como eu pensava. Dez noites atrás, acordei com um estranho silêncio na casa. Por baixo da porta do quarto, uma luz se infiltrava. Levantei e fui até a sala. Uma dezena de velas, de todos os tamanhos e cores, ardia no cômodo. Paralisada, dei um grito. Angelise acudiu, e, à luz das velas, pude ver seus olhos fundos de choro. Não, não fôra ela quem acendera as velas. Estava deitada desde que chegara em casa, após receber um não da empresa na qual esperava trabalhar.


Mandamos trocar as fechaduras das portas – só então nos lembramos de que Luíza não devolvera as chaves. Mesmo com a troca, não conseguimos nos acalmar. Acabaram as conversas animadas antes de dormir. Começamos a ficar nervosas com cada barulho estranho no meio da noite. Ontem à tarde, ao escavar os vasos de flores para colocar adubo e ver se as plantas reagiam, Angelise encontrou enterrados vários papéis. Com os nossos nomes, e o de Ieda, escritos e riscados.


Precisei deixar minha amiga em uma clínica, para que se recuperasse do ataque de nervos. Não, não foram só as velas ou os papéis que causaram a sua crise. Foi a notícia, que chegou à noite, de que Ieda morreu no hospital. Ninguém sabe de que. E agora Angelise está internada, chorando copiosamente. E eu estou aqui, trancada no meu quarto, embaixo das cobertas, sem conseguir dormir. Atenta ao menor ruído. Ou ao silêncio que cai sobre a casa, e que eu preferia que fosse cheio de sons...

quarta-feira, 18 de março de 2009

Dúvida cruel

Eu não acredito, mas eles insistem em dizer que, ontem, eu morri. Um absurdo, claro: não vejo como isso possa ter acontecido. Ontem foi um dia como outro qualquer. Acordei às sete horas, tomei banho, preparei o desjejum e fui para o escritório. Não vi Maria, minha esposa, porque ela vai cedinho à feira, todas as sextas. As crianças ainda estavam dormindo – estão de férias e, por isso, têm todo o direito de dormir até mais tarde. O porteiro do prédio não me cumprimentou quando eu saí, provavelmente estava de mau humor. O que me irritou, mesmo, foi que nenhum motorista de táxi parou ao meu aceno. Bando de mal-educados!

Acabei andando as nove quadras até a empresa, mas, mesmo assim, não me senti cansado. Por isso, subi as escadas em vez de pegar o elevador. Quando cheguei na porta do escritório, vi que a secretária, Tereza, chorava. Sou uma pessoa discreta, passei reto murmurando apenas um bom-dia, ao qual ela não respondeu. Passei a manhã toda lendo relatórios atrasados, e, milagre dos milagres, o telefone não tocou nenhuma vez e ninguém bateu à porta para me interromper.

Quando dei por mim e olhei no relógio, já eram quase duas da tarde. Como não estava com fome e sentia uma grande energia, resolvi não interromper o trabalho. Segui até o final da tarde, sem parar. Foi só às cinco horas, quando finalmente achei que já tinha feito muito por um dia só e ia deixando o escritório, que pela primeira vez ouvi falar da minha morte.

A notícia veio pelos lábios de Tereza, que agora parecia um pouco mais calma do que pela manhã:

– Doutor Marcos, estou saindo para ir ao velório do doutor Fernando – disse ela ao meu sócio, que também passava por sua mesa no momento.

Estaquei. Que brincadeira era aquela? Ao meu velório? Ela estava louca, ou se referia a algum outro Fernando? Parei bem na sua frente e fiquei encarando-a, para ver se ela se explicava. Sua única reação, no entanto, foi encolher-se e esfregar os braços, como se sentisse um frio súbito.

– E as coroas, em nome de todos nós, você já enviou? – quis saber Marcos, acrescentando antes que a secretária respondesse: – Envie meu pêsames à Maria, e diga que eu passo lá mais tarde. Ainda não estou acreditando! Meu Deus, eu e o Fernando trabalhamos juntos desde que saímos da faculdade!

Esperei um minuto, com certeza de que logo os dois iriam cair na gargalhada – embora eu, particularmente, considerasse a piada de péssimo gosto. Já ia abrir a boca para perguntar se estavam me gozando porque eu passara o dia enfurnado na minha sala quando Tereza voltou a chorar. Atônito, estendi o braço para consolá-la, mas meu colega foi mais rápido e enlaçou-a num abraço desajeitado. Olhando para ele, percebi que, por baixo dos seus óculos, também corriam duas grossas lágrimas.

– Ei, vocês dois querem me explicar o que está acontecendo? – disse eu, por fim, uma pontinha de medo começando a se insinuar no meu peito.

Foi como se eu nada tivesse dito. A secretária chorou silenciosamente por mais alguns minutos e, depois, desvencilhou-se dos braços de Marcos.

– O senhor sabe – disse ela, olhando pare ele e continuando a me ignorar – que eu sempre tive uma queda pelo doutor Fernando? Tão distinto, tão elegante... Claro, nunca disse nada, ele era casado e eu sou uma mulher direita, mas, agora, fico pensando se não devia ter aproveitado...

Chocado com a revelação, eu não sabia se começava a rir ou se perguntava se ela estava brincando. Enxugando os olhos, ela se recompôs e disse, num sorriso triste:

– Mas, por favor, doutor Marcos, não conte isso para ninguém. Deus me livre, ele lá, morto, e eu aqui falando essas coisas...

Saí batendo a porta. Os dois deixaram escapar um grito de espanto, mas azar: se queriam ficar naquela brincadeira idiota, como se eu não estivesse ali, eu é que não iria ficar escutando baboseiras, muito menos voltar atrás para pedir desculpas por tê-los assustado. Ignorei o elevador e mais uma vez preferi as escadas – um pouco de exercício ajudaria a me acalmar e a pensar melhor sobre o assunto. Que, pensar sobre o assunto, que nada!, xinguei a mim mesmo. Onde já se viu ficar dando bola para quem fingia que eu tinha morrido?

Cheguei em casa quando já escurecia (mais uma vez, nenhum táxi tinha parado para mim). Ao dobrar a última esquina, estranhei a movimentação: dezenas de carros estavam estacionados próximo ao meu prédio, outros paravam na frente dele e deixavam passageiros. Será que algum dos vizinhos estava dando uma festa e sequer me convidara?, pensei, um pouco enciumado.

O porteiro da noite estava ocupado e não me viu passar. Subi até meu apartamento lembrando que não comera nada desde a manhã, e pensando que uma janta gostosa me faria bem. Aquela cena estranha no escritório me deixara sentindo esquisito, só podia ser fome. Será que Maria já estava com a comida pronta?, questionei-me, e lancei um olhar para a porta do 202. Não precisei pegar a chave para abri-la: chorosa, Maria encostava-se ao batente, recebendo abraços e consolos de mais um casal de amigos que chegava.

– O que é isso? O que está acontecendo aqui? – perguntei à minha mulher.

Mais uma vez, fui solenemente ignorado. Deixando a porta escancarada, Maria e os outros dois apartamento adentro, até a sala. Segui-os, e quase desmaiei ao constatar que o aposento estava cheio – de pessoas e de coroas de flores. No centro, um esquife, iluminado por duas velas. Meus filhos, que também choravam, correram agarrar-se às saias da mãe.

Caminhei até o meio de toda aquela gente, certo de que todos os olhares se voltariam para mim, percebendo o engano da situação. Ninguém me deu bola. Tentei puxar conversa com um ou dois velhos conhecidos, que há anos eu não via e que agora ali estavam, mas eles também não prestaram atenção em mim. Por fim, aproximei-me do caixão. No entanto, não tive coragem de olhar para dentro.

Depois disso, corri trancar-me no meu quarto, com medo de estar enlouquecendo. Ou eles todos estão loucos, ou sou eu que devo ser internado. Morto, pelo menos, sei que não estou. Não consegui sequer pregar o olho a noite inteira desde que tudo isso aconteceu, como posso estar dormindo o sono eterno? Fiquei esperando Maria vir se deitar, mas ela não veio. Passou a noite toda ao lado do caixão, soluçando. Apesar do absurdo da situação, senti-me comovido pela sua dedicação. Sinal que me ama. Mas como pode pensar que estou morto? Como pode aceitar tranqüilamente todos os pêsames?

Já são novamente sete horas da manhã, falta apenas uma hora para o enterro. Para o meu enterro, como eles insistem em dizer. E, mesmo depois de uma noite inteira pensando, ainda não sei o que devo fazer. Ficar aqui, quieto, no meu canto? Voltar lá na sala e tentar novamente explicar que estou vivo, olhem, eu estou aqui? Ou dar-me por vencido, já que eles são maioria, e acreditar eu também que eu morri? Oh, Senhor, que dúvida cruel!

terça-feira, 17 de março de 2009

As noivas de preto

Maristela Scheuer Deves
Aquelas velhas fotografias de noivas vestidas de preto sempre tinham me intrigado, desde que eu as encontrara em um velho baú no sótão da casa de meus avós. Eu tinha uns doze ou treze anos na ocasião. Curiosa como todos são nessa idade, corri perguntar à minha avó quem eram aquelas mulheres e por que tinham se casado assim. Sua reação, no entanto, deixou-me espantada.

Em vez de responder à minha inocente pergunta, ela ficou olhando demoradamente as fotos, com uma expressão esquisita. Não consegui identificar exatamente o que via no seu rosto, mas parecia ser uma mistura de medo e curiosidade. Depois de alguns minutos em silêncio, quis saber onde eu encontrara aquelas imagens. Contei-lhe do baú, e ela pediu que devolvesse as fotos ao seu lugar e não mais pensasse no assunto.

Insisti, mas sem resultado. Como eu não era de desistir facilmente, procurei desta vez o meu avô. Sua reação não foi muito melhor ao olhar o que eu tinha em mãos, mas pelo menos ele deu-me uma explicação: aquelas eram sua avó, ou seja, minha tataravó, e suas irmãs. Haviam se casado de vestidos e véus pretos porque estavam de luto, o pai delas havia morrido pouco tempo antes.

Fiquei a matutar comigo mesma por que é que elas não haviam esperado um pouco mais para casar-se, pois então poderiam usar o branco tradicional. Também achei estranho todas elas terem contraído núpcias na mesma época, mas vovô disse que fosse brincar e o deixasse fazer suas coisas.

Por alguns dias ainda enchi meu pai e minha mãe de perguntas, mas como as respostas variavam de um “eu é que sei?” a “vai ver, era moda na época”, acabei desistindo e esquecendo o assunto. Numa ocasião seguinte em que fui fuxicar nas coisas guardadas no sótão, não encontrei mais as fotografias, até mesmo o baú havia sumido de lá. Achei estranho, mas não dei muita importância ao assunto.

Nas últimas semanas, porém, a lembrança daquelas noivas vestidas de preto vem me atormentando. Sonho com elas todas as noites, e penso nelas cada minuto do meu dia. Não sou mais uma criança: estou com 24 anos e vou casar-me em poucos dias. Até já comprei meu vestido, lindo, resplandecente, branco como a neve. Minha mãe chorou quando o viu, e a princípio creditei seu choro à emoção de que sua única filha iria se casar. Mas agora sei que não era isso. E sei, também, o porquê daqueles vestidos negros que há tanto tempo despertaram a minha curiosidade...

Descobri por acaso, enquanto procurava velhas fotos minhas para o painel de momentos marcantes de minha vida, que ficará em exposição na entrada do salão de festas. Embaixo das dezenas de álbuns com registros feitos desde a minha infância, encontrei um envelope amarelado pelo tempo. Curiosa, abri-o. Lá, uma única foto, de um casal cujo rosto risonho eu reconheci: meus pais, muito mais jovens do que agora, no dia do seu casamento. Nesse momento, dei-me em conta que nunca antes havia visto imagens daquela data, e compreendi também o motivo: o vestido que minha mãe envergava, de seda e com lindos bordados, era negro.

Minha mãe surpreendeu-me com a foto nas mãos, e, perante meu olhar indagador, pôs-se novamente a derramar lágrimas. Mesmo sem entender o que estava acontecendo, abracei-a e confortei-a, como se a mãe fosse eu. Não pedi explicações quando ela se acalmou, mas ela as deu mesmo assim. Sabia que era hora, e que não podia adiar mais.

– Quando eu me casei com seu pai – começou ela –, ninguém me disse nada. Sofri muito com o que aconteceu, e sei que você também vai sofrer, minha filha, mas pelo menos você vai estar preparada.

Antes de prosseguir, ela levantou-se e foi até uma gaveta trancada. Tirou uma chavezinha de uma corrente pendurada no pescoço e a abriu. Lá de dentro, pegou uma caixa de madeira, que colocou sobre a mesa, chamando-me para ver o conteúdo. Ali estavam as antigas fotos que eu vira ainda criança, num baú no sótão dos meus avós. E também outras, muitas outras, todas mostrando noivas vestidas de preto. Lá estavam minha avó, todas as minhas tias por parte de pai... Aturdida, fiquei passando uma a uma, sem saber o que dizer.

– Sim, minha pequena. Todas as mulheres da nossa família, pelo lado do seu pai, carregam essa maldição – disse. Vendo que eu abria a boca para perguntar algo, apressou-se em prosseguir –
Nós não escolhemos nos casar de preto. Na verdade, nós não nos casamos de preto. Meu vestido e meu véu eram tão alvos quanto os seus. Mas na hora da cerimônia, quando eu coloquei a aliança no dedo, ele começou a mudar...

Ela trocara de roupa no meio da festa, contou, com a desculpa de usar algo mais confortável. A verdade era que, para seu desespero, ele estava ficando a cada minuto mais escuro. Pensou que as primeiras fotos estariam boas, pelo menos, mas, poucos dias depois de as receber do fotógrafo, nelas também o vestido passara a ficar preto.

– Queimei quase todas elas, junto com o vestido que eu tinha gostado tanto. Guardei apenas essa. Foi só depois de tudo ter acontecido que minha sogra, sua avó, contou-me que isso acontecia há quatro gerações. Desde que uma tia-avó do seu avô foi rejeitada pelo restante da família por se casar grávida, sendo obrigada a casar de véu negro, ela amaldiçoou a todos, dizendo que, dali por diante, nunca mais uma mulher da família se casaria de branco. E, até hoje, isso vem se cumprindo...

Tenho menos de uma semana até o dia do meu casamento. Tento afastar os meus pensamentos mórbidos, dizer a mim mesma que isso é fantasia, que deve haver alguma explicação lógica. Talvez tenha sido mesmo luto, talvez... Mas minha mãe não mentiria para mim. Não faria com que eu me angustiasse sem necessidade.

Não contei a meu noivo, para ele não pensar que estou enlouquecendo. Mas hoje pela manhã, acariciando o esvoaçante tecido de meu lindo vestido de sonho, vi uma pequena mancha mais escura em um canto, sob um babado. Outra apareceu na pontinha do véu. Pensei em cancelar o serviço do fotógrafo, para garantir, mas achei melhor encomendar com urgência um vestido de reserva, cor de champanhe, para usar assim que sair da igreja...

segunda-feira, 16 de março de 2009

O Bicho Invisível

Maristela Scheuer Deves

Nem lembro mais a última vez em que fui à praia. Não que eu não goste de mar, sol e calor. É que não quero mostrar meu corpo. Não quero que vejam as cicatrizes nos meus braços, nas minhas pernas, no meu corpo todo. Por isso, sempre uso mangas longas e calças compridas, mesmo no verão. Mas se você pensa que é a vergonha que me impele a esconder a marcas, está enganado. São as lembranças. Se alguém perguntar de onde elas vêm, eu vou ser obrigada a recordar...

Eu era criança, lá pelos meus onze anos. Adorava correr, brincar com minhas amigas. E, principalmente, pregar peças em uma delas, Clarice, a menorzinha. Com apenas oito anos, ela era a vítima perfeita para nossas brincadeiras nem sempre tão inocentes.

Naquela tarde, havíamos ido até uma propriedade dos pais de Eva, a garota que morava em frente à minha casa. Era a “morada velha”, como Seu Balduíno, pai de Eva, chamava o antigo sítio onde a família habitara até minha amiga ter dois ou três anos. O lugar ficava a uns cinco ou seis quilômetros de nossas casas, por isso fomos todas – eu, Eva e Clarice – empoleiradas na traseira da caminhoneta do Seu Balduíno (naquele tempo, isso ainda não era proibido).

Chegando ao sítio, brincamos algum tempo de esconde-esconde, mas logo a brincadeira foi perdendo a graça. Até que chegou a hora em que não conseguíamos encontrar Eva. Era a vez de Clarice procurar, por isso em princípio achei divertido, mas quando já se tinham passado mais de vinte minutos, dez dos quais comigo ajudando na busca, comecei a ficar irritada, e até mesmo um pouco preocupada.

– Apareça, Eva. Você ganhou – chamei, pensando onde afinal ela se escondera. Claro, ela conhecia aquele lugar como a palma da mão, e nós não, era lógico que ela encontraria os melhores esconderijos.

Mesmo com nossa rendição, entretanto, ela não apareceu, e retomamos as buscas. Outros dez minutos e eu a localizei num velho galpão, deitada sobre um monte de palha de milho. Parecia desacordada, e na hora fiquei em dúvida se era verdade ou fingimento. Clarice, que entrara no galpão logo atrás de mim, deu um gritinho ao ver Eva caída ali e correu até ela.

– Acorda, Eva, acorda – disse, quase aos soluços, chacoalhando nossa amiga pelos ombros.
Aos poucos, Eva foi abrindo os olhos. Girou a cabeça, como que para ver onde estava.

– O que aconteceu? Você está bem? – interpelou a pequena, antes que ela pudesse falar qualquer coisa.

Eva disse-nos eu não sabia como fora parar ali, e que não ouvira nossos gritos.

– Só me lembro que eu estava procurando um lugar para me esconder, daí senti uma coisa me puxando para trás. Olhei, e não vi nada... Mas ainda estava sendo puxada, como se fosse por um bicho invisível. Desmaiei, e só acordei agora.

Minha amiga contou sua história com tanta convicção que até mesmo eu pensei que podia ser verdade. Entreolhamo-nos as três e, sem mais uma palavra, corremos para fora dali, para bem longe do Bicho Invisível. Quando passávamos pela porta, no entanto, Eva piscou para mim, e entendi: como eu suspeitara a princípio, aquilo era só mais um plano para amedrontar a Clarice. Sorri comigo mesma, impressionada com o talento de atriz da minha amiga, e resolvi incrementar a história assim que surgisse uma oportunidade.

Fomos brincar no outro lado do pátio, bem longe do galpão – já que agora Clarice não queria nem chegar perto dele. A cada pouco tempo, eu ou a Eva dávamos um jeito de desaparecer e de sermos encontradas “desmaiadas”. Sempre, claro, havíamos sido vítimas do Bicho Invisível.

Quando a Clarice não agüentou mais de tanto medo e começou a chorar, ficamos com pena e decidimos parar com aquilo, até porque já estava se tornando repetitivo. Depois de acalmá-la, dizendo que o Bicho Invisível tinha ido embora (nosso arrependimento não era tanto a ponto de contarmos que o tínhamos inventado), propomos brincar nos cipós de uma mata pertinho da velha casa.

A pequena, que adorava pendurar-se nos cipós, ficou um pouco mais animada. Enxugou as lágrimas com a mão e nos olhou, esperançosa:

– Mas o Bicho Invisível foi embora mesmo?

Mal disfarçando o riso, garantimos solenemente que sim, e rumamos as três para o meio das árvores. Passamos uma meia hora muito divertida, cada uma querendo se embalar mais forte do que as outras nos balanços improvisados nos cipós ou pendurando-se como se fosse trapezista. Quando demos por nós, Clarice sumira.

Primeiro ficamos preocupadas, mas depois de procurarmos um pouco Eva sorriu.

– Ela desconfiou que a enganamos e está querendo dar o troco – sussurrou-me ao ouvido.

Eu também achava que podia ser isso, mas mesmo assim estava temerosa. Afinal, éramos as mais velhas, e portanto responsáveis por ela. Fosse o que fosse, deveríamos continuar procurando.Acabamos por encontrá-la mais de cem metros distante de onde estávamos brincando, deitada ao lado de um tronco caído – e desmaiada. Abaixei-me e toquei-a no rosto.

– Clarice, levanta.

Mas a menina não se mexeu. Comecei a ficar com medo. Eva, menos paciente que eu, começou a sacudi-la, levemente a princípio, depois com mais força. Clarice finalmente abriu os olhos, mas parecia em transe. Debatia-se nos nossos braços, estapeando-nos com uma força que não sabíamos que ela possuía.

– O Bicho... O Bicho Invisível... – gritava sem parar.

Foi só a muito custo que conseguimos acalmá-la. Para mim, ela parecia realmente assustada, mas Eva desconfiava seriamente que era tudo fingimento, uma oportunidade que a nossa pequena amiga encontrara para nos dar uns tabefes (merecidos) pelo que fizéramos antes.

– Não tem bicho nenhum – cortou Eva, enquanto praticamente carregávamos Clarice para longe dali.

– Tem sim... Vocês mentiram... Ele não foi embora... – choramingava Clarice. – Ele me pegou quando eu tava procurando um cipó maior para me balançar... me arrastou até lá... e disse que ia voltar depois... para pegar vocês...

Foi o suficiente para nos fazer parar. Mesmo sabendo que não existia bicho nenhum, senti um arrepio. A fedelha falava com tanto medo e tanta certeza! Eva olhou-a com uma cara que achei que ia se enfurecer e dar-lhe um safanão, mas aí ela começou a rir sem parar...

– Você tem cada uma, Clarice... – disse, voltando a andar e praticamente arrastando a menor com ela.

Por algum motivo que até hoje não consigo entender, eu fiquei ali parada vendo-as se afastarem, Clarice chorando, Eva rindo. Era algo surreal. Inventáramos aquilo, e agora eu me sentia amedrontada porque a pequena invertera o jogo e queria nos assustar. Eu até aceitava que Eva conseguisse fingir bem, pois ela tinha uma cara de pau tremenda, mas a Clarice...

Sacudi a cabeça para parar de pensar besteiras e dei um passo na tentativa de alcançá-las, mas parei. Não, fui parada. Era como se alguém, ou algo, me segurasse, puxando-me para trás. Comecei a me debater, mas não adiantou. Gritei, mas minhas amigas já estavam longe, e não me ouviram.

Foi quando eu senti as afiadas unhas do Bicho Invisível rasgando minha pele, e desmaiei.

domingo, 15 de março de 2009

A última estripulia

Maristela Scheuer Deves

Aquele tempo já vai longe, mas, quando penso, pareço ainda estar vendo a cena, como um filme muitas e muitas vezes repetido. Éramos três, nos nossos seis ou sete anos, idade em que alguns têm medo, mas a maioria inocente se acha imbatível e indesafiável. Claro, acreditávamos (em parte) nas histórias de fantasmas que os irmãos mais velhos contavam para tentar nos assustar, mas, desconfiados de suas intenções, preferíamos pensar que, se um dia nos deparássemos com algum ser do além, saberíamos como enfrentá-los com a nossa super-força de crianças travessas.

Pobres de nós. Pobre Carlos Alberto, pobre Carmem... pobre de mim, também, embora tenha conseguido (terei mesmo?) me safar com apenas algumas seqüelas... A ingenuidade, essa estranha força que geralmente protege os pequenos e os encoraja a seguir adiante e crescer, daquela feita foi macabramente fatal. Vendo agora, com olhos de adulto – e desde aquele dia sem nenhuma ingenuidade –, percebo porém que não teríamos como saber. Mesmo os mais velhos tinham medo de ali passar apenas de noite, e já fizéramos aquelas mesmas estripulias tantas e tantas vezes!

Foi num dia frio, junho ou julho, não lembro direito – embora recorde, e nunca vá esquecer, cada momento e cada fato desde que entramos no velho cemitério. Eu, com minha grossa japona de nylon marrom, recheada com um blusão de lã castanho, gorro de crochê na cabeça, meias grossas e botas de borracha amarelas que tinham sido do meu irmão. Carmem, com seu costumeiro casaco de lã azul claro e gorro multicolorido, que tantas vezes invejei pensando que se parecia com um arco-íris. Mesmo Carlos Alberto, que nunca parecia sentir frio, naquele dia cedera às baixas temperaturas (ou às recomendações de sua mãe) e se agasalhara.

Mesmo entrouxados como estávamos, ignoramos os pedidos de que brincássemos no quintal de minha casa. Depois de tantos dias chuvosos em que a rala diversão se restringira à televisão e às rodas de faz-de-conta, queríamos mais era aproveitar o sol e correr até onde pudéssemos. Só não fomos pular do telhado na casa da vizinha porque esta, que se arrepiava só de pensar em um de nós quebrando um braço ou perna, agora ficava vigilante e sequer nos deixava chegar perto do cinamomo que escalávamos para chegar nas telhas.

Depois de esgotar as possibilidades das árvores próximas à minha própria casa, alguém – ou teriam sido todos, de uma só vez? – teve a idéia: ir caminhar sobre os muros do cemitério, atividade exploratória que costumávamos fazer pelo menos uma ou duas vezes por semana.Fosse de quem fosse a sugestão, foi aceita por unanimidade, e corremos todos pelas quase desertas duas quadras de rua de chão batido que nos separavam do campo santo (santo?, me perguntei depois, e continuo até hoje sem resposta) do vilarejo em que morávamos. Se pelo menos soubéssemos que o improvisado playground do qual tanto gostávamos só não se tornaria nas próximas horas a nossa morada definitiva porque eu tive a proteção dos santos e porque Carmem e Carlos Alberto... bem, melhor seria que eu pudesse partilhar a vã esperança de alguns, de que um dia eles ainda venham a ser encontrados.

Mas, voltemos àquela tarde, por mais terríveis e dolorosas que me sejam as lembranças. Talvez seja melhor eu fazer de conta que estou relatando um dos filmes que naquela tenra idade gostava de assistir escondida (meus pais me proibiam pensando que eu fosse ter maus sonhos e acordar gritando durante a noite, o que nunca aconteceu), e que desde então nunca mais pude ver – pois depois da última estripulia do nosso trio, passei a ter pesadelos noite após noite sem precisar do incentivo de vídeos de terror. E, confesso, não me sentiria nem um pouco usurpada se não tivesse sido um dos atores protagonistas daquela trama...

Deviam ser umas três horas da tarde quando chegamos ao enferrujado portão de ferro. Para ir mais depressa, empurramos os três juntos, e quando ele cedeu disputamos outra corrida para ver quem chegava primeiro aos velhos túmulos dos suicidas, colocados no fundo do cemitério, bem atrás dos outros. Várias vezes pensei que talvez tenha sido impressão minha, mas algo me diz que eu realmente senti um pouco mais de frio nos segundos que levei para chegar até o ponto combinado. Levemente emburrada por ter sido a segunda, depois de Carlos Alberto ("Isso não vale", protestei, "os meninos sempre são mais rápidos"), não dei a mínima para uma possível queda da temperatura e, sem-cerimônia como sempre, subi no túmulo mais próximo para mais facilmente alcançar o topo do muro de pedra que circundava a área.

Andar sobre o muro do cemitério era, de longe, a brincadeira que mais nos agradava, embora nunca tivesse vencedores ou vencidos (ou talvez por isso mesmo). Numa época em que sonhávamos em ser equilibristas de circo, aquele era o lugar ideal para treinos, até porque ficava longe da vista de nossos pais e ninguém ali nos repreendia dizendo que poderíamos cair se não fôssemos mais devagar. Sem falar, é claro, que desistíramos de passar de túmulo em túmulo dando beijos nos anjinhos de pedra desde que Carlos Alberto ficara com a boca toda inchada após ser ferroado por marimbondos instalados atrás de um desses seres alados...

As primeiras voltas transcorreram sem problemas, eu na frente, de vez em quando dando piruetas para mostrar o equilíbrio, Carmem logo atrás e, fechando a fila, o Carlinhos (que hoje estariam já, como eu, perto dos 30 anos se tivéssemos seguido a ordem de ficarmos em casa). Por que, me pergunto, como já me perguntei milhões de vezes, éramos crianças tão teimosas? Talvez alguns puxões de orelha dados a tempo tivessem surtido efeito, mas, sinceramente, duvido – nada nos faria desistir das nossas traquinagens, não quando, fãs que éramos de desenhos de super-heróis, nos sentíamos iguais à Mulher Maravilha, ao Homem Aranha e ao Super Homem.

Cansada de andar e andar, Carmem, que se desinteressava mais rapidamente das brincadeiras que inventávamos, resolveu descer depois de uma meia hora. Como estávamos perto da fileira de sepulturas das criancinhas, algumas das quais enterradas há décadas, minha pequena companheira se dirigiu para lá – era outro de nossos passatempos ficar olhando as fotos dos falecidos, e tínhamos atração especial por aqueles, que tinham sido crianças iguais a nós. Teriam eles um dia brincado também nos mesmos muros daquele cemitério?, perguntáramos a nós mesmos não apenas uma vez. Ao ver o que nossa amiga fazia, Carlos Alberto resolveu imitá-la. Eu, que já estava me vendo a desfilar sobre a corda bamba num dia de espetáculo e lona cheia, resolvi treinar mais um pouco. E acho que foi o que me salvou.

Em meio a meus delírios circenses, cuidava pelo canto do olho o que os outros dois faziam. Se eles fossem embora e me deixassem, como eu poderia depois dizer para a minha mãe que tinha sido por idéia e insistência deles que eu me demorara tanto a brincar no cemitério? Claro, ela já estava acostumada e sabia que essas desculpas eram esfarrapadas, mas era melhor não facilitar... Por isso, desci ligeira do muro quando, depois de um minuto de distração, não pude mais ver onde eles estavam. Sem qualquer preocupação que não a companhia e a necessária desculpa (embora mais uma vez eu percebesse que a temperatura continuava a cair), saí a procurá-los atrás das fileiras de jazigos.

O velho cemitério era enorme, um verdadeiro museu para as nossas explorações pseudo-arqueológicas. Depois de percorrer algumas fileiras, acabei esquecendo-me de que estava atrás dos meus amigos e fiquei a ler (sim, tínhamos sete anos, lembro agora, pois já estávamos na primeira série), soletrando com dificuldade, os estranhos e enigmáticos epitáfios em alemão de alguns túmulos mais antigos. Depois, fui até onde estavam enterrados meus bisavós Jacob e Bárbara, que eu não conhecera, e demorei-me um minuto a rezar por eles. Não havia mais flores nos vasos, por isso corri até a parte onde não havia ninguém sepultado e cresciam algumas moitas floridas em meio a pés de aipim plantados por um ex-zelador.

Enquanto colhia alguns cachos amarelos ouvi chamarem meu nome, e virei-me lembrando que me perdera de Carmem e Carlos Alberto. Sem ver ninguém, levei as flores até meus bisavós e voltei a percorrer a área, desta vez chamando alto o nome de meus colegas de aventuras. Após uns 10 minutos de buscas, irritada porque não me respondiam, pensei que estavam escondendo-se de propósito e fiquei a matutar o que fazer. A zanga dizia que eu devia ir embora e deixá-los para trás, mas eu achava que deveria armar depois uma vingança maior. Se eu soubesse que nunca teria a oportunidade de me vingar, e nem o quereria mais, dentro de pouco tempo...

Comecei a correr entre os túmulos, pensando em surpreendê-los, mas constatava com uma raiva cada vez maior que o esconderijo que tinham encontrado devia ser muito bom. Não haviam saído pelo portão, disso eu tinha certeza – enquanto andava pelo muro, eu estava de frente para a entrada, e por ali eles não tinham passado. "Tá bom, eu desisto, não sei onde vocês estão", gritei, dando a senha para que aparecessem e esperando ouvir seus risos em resposta. Mas, mais uma vez, foi o silêncio que me respondeu. Foi então que percebi que algo não podia estar bem. No céu, o sol já ia se pondo, embora eu não tivesse percebido que se passara tanto tempo assim. E com o anoitecer, o frio se intensificava mais e mais, provocando-me calafrios – ou pelo menos foi o que eu pensei então.

Julguei ter visto alguém me espiar por trás de uma lápide do outro lado, e quase respirei aliviada. Ao chegar lá, outra vez não havia ninguém. Já que não querem aparecer, eu pensei, ainda crente de que tudo não passava de mais uma brincadeira (inventada pela Carmem, com certeza, pois ela adorava pregar peças nos outros), resolvi ir para casa. Os outros que fossem depois, até porque deviam estar me vendo de onde estavam. Foi eu colocar o pé no portão, no entanto, que eu ouvi o grito. A cidade inteira deve tê-lo ouvido, de tão forte e pavoroso que foi. Não foi socorro, não foi me ajudem, não foi nenhuma palavra que eu conhecia até então ou que vim a conhecer depois. Foi a mais pura manifestação de horror que se poderia conceber, provavelmente ainda maior. Tão verdadeira que eu sequer teria como pensar que se tratasse de encenação – podíamos querer ser artistas, mas ninguém tinha adquirido ainda tal capacidade dramática.

Os calafrios vieram mais fortes, enquanto o grito se repetia. Eram, misturadas e dezenas de vezes ampliadas, as vozes da Carmem e do Carlos Alberto, não havia dúvida. A tremedeira não tinha parado, mas, com a coragem típica dos pequenos que acham que podem enfrentar qualquer coisa, corri para o local de onde viera o som, disposta a salvar os meus amigos. Mas eu jamais, em minha curta vida até aquele dia, por mais filmes de terror que eu tivesse visto escondido de meus pais, tinha imaginado deparar com o que eu vi atrás do túmulo de um enforcado que recentemente havia sido sepultado – um daqueles sobre os quais costumávamos pular para alcançar a borda do muro.

Até hoje, a cena povoa as noites em que me reviro na cama, encharcando os lençóis de suor e acordando aos berros.No recuo entre duas sepulturas, uma das quais parecia ter sido arrancada do chão por uma força sobre-humana, estavam meus amigos. O pavor estampado nos olhos dos dois seria suficiente para acabar com quaisquer desconfianças que ainda me restassem, mas isso não era preciso: para garantir a veracidade da situação, a cara carcomida e cheia de vermes do homem que em vez de estar dentro caixão aberto ali do lado, como a lógica e a razão pregavam que devia ser, me encarava enquanto segurava meus colegas, cada um erguido do chão em uma de suas enormes mãos. O grito que se ouviu então saiu de minha boca, pois os outros não conseguiam mais pronunciar nenhuma palavra. E voltei a gritar quando também a lápide que ostentava a foto do suicida mais próximo caiu para um lado, dando espaço para outro rosto putrefato, e senti uma mão igualmente decomposta segurar-me pelo ombro...

Graças a Deus, a força quase sempre nos surge quando mais precisamos dela, e o medo é um combustível tão eficaz quanto o mais refinado derivado de petróleo. Sem conseguir desviar os olhos das outras crianças (não, das outras crianças vivas, pois já alguns pequenos túmulos começavam a liberar também suas cargas), desvencilhei-me não sei como do braço que tentava me cingir, e saí correndo de costas até tropeçar no portão. Nessa hora, em que o sol já se escondia em definitivo mas ainda lançava alguns raios capazes de ajudar a visão, vi pela última vez os rostos agora contorcidos – não sei se de dor ou de puro medo – daqueles que eram os meus melhores amigos. Então, tudo escureceu, inclusive meus olhos, e só voltei a mim quando uma multidão de pessoas que os gritos atraíram levantaram-me e me levaram para baixo de uma torneira esquecida a um canto.

O resto do dia, ou da noite, visto que soube depois já serem mais de 19h, foi uma loucura quase tão grande quanto a cena que eu presenciara, e continua igualmente gravado a fel em minha memória. Atrapalhada, eu tentava responder às perguntas que me faziam, mas as respostas me saíam incoerentes, entre lágrimas e gritos gaguejados. Só o que conseguia balbuciar era "os rostos, os rostos deles, eles estavam com muito medo". E via, mais uma vez e repetidamente, o mudo pedido de ajuda que neles estava estampado antes de eu desmaiar.

Nem as lanternas nem o potente farol trazido pelos bombeiros foram suficientes para que a Carmem e o Carlos Alberto fossem encontrados. Os voluntários das redondezas tinham se divididos em grupos para cobrir todo o cemitério, mas, passada mais de uma hora, os únicos achados haviam sido sete ou oito túmulos arrombados, com os corpos jogados fora do caixão – estranhamente para os outros, mas não para mim, próximos um do outro junto ao setor dos suicidas. Agora, já não era mais apenas eu que chorava baixinho. Ao meu lado, o pranto era ainda maior por parte das mães dos meus amigos, e os pais também já estavam quase entregando os pontos. O lado de fora do campo santo também foi investigado, mas se não havia nem as pegadas que seriam de se esperar no barro ainda mole da chuva dos dias anteriores, quanto mais a pista dos dois pequenos.

Alguns aventaram que devia ser seqüestro, e que o pedido de resgate viria sem demora. Outros, que surpreendêramos profanadores de túmulos em pleno ato e por isso fôramos atacados (ninguém parecia ver que estávamos ali há horas até tudo acontecer), os outros dois levados e eu escapara. Perguntavam-me isso e aquilo, querendo que eu confirmasse hipóteses, mas eu só conseguia chorar, até porque nem eu mesma tinha coragem de acreditar no que os meus olhos tinham visto. A meia-noite chegou, sem que nada de novo acontecesse. Para meu alívio, alguém se lembrou de me levar embora antes que os outros desistissem das buscas para aquele dia. Se é que se pode chamar de alívio uma noite de olhos arregalados, febre e tremores, na qual nem eu nem meus pais conseguimos dormir pois eu me negava a ficar sozinha.
Fiquei mais de um mês sem ir na escola, sem querer sequer sair de casa. O sol lá fora já não era mais convidativo como antes, e não adiantava os coleguinhas passarem lá depois da aula me convidando para brincar – sem a Carmem e o Carlinhos, eu não vou, respondia sempre, em minha surda teimosia, com a esperança de que tudo não tivesse passado de um pesadelo da noite anterior. Mas, no fundo, eu sabia desde o princípio: sabia que nada seria encontrado no cemitério, onde os cadáveres fedorentos já haviam sido reenterrados; sabia que não viria nenhum telefonema ou pedido de resgate; sabia que não se tratava de uma traquinagem que passara da conta; sabia que os meus amigos não voltariam jamais...

Isso aconteceu já fazem mais de 20 anos, e depois de meses de espera frustrada duas pequenas cruzes foram colocadas junto à fileira das crianças. A cidade inteira compareceu ao enterro simbólico, sem corpos, mas com muita emoção. A cidade inteira, menos eu – nada nem ninguém me faria voltar de novo àquele lugar. E nunca mais voltei, nem há cinco anos, quando meu avô foi sepultado. Preferi ficar na igreja, rezando por sua alma e por todas as crianças ingênuas e inocentes que acreditam que os mortos estão mortos, e que só os vivos é que podem nos fazer algum mal...

sábado, 14 de março de 2009

Os deliciosos biscoitos de Oma Guerta

Maristela S. Deves

Mariazinha quase bateu palmas quando Oma Guerta entrou na sala carregando a bandeja de biscoitos. Esse era o melhor momento das visitas semanais à casa da avó: a hora do lanche. Tudo o que a Oma fazia era delicioso, cucas, doces, bolos, biscoitos dos mais variados tipos. Gulosa, pegou logo três dos biscoitos, lambuzando-se toda de confeitos coloridos.

– Kind, Kind – riu a avó com seu forte sotaque alemão, acariciando a cabeça da netinha de nove anos enquanto ela atacava a bandeja outra vez.

Cabelos grisalhos presos num coque, olhos azuis brilhantes por trás das lentes dos óculos de aros redondos, Oma Guerta ajeitou o xale de crochê sobre os ombros antes de retornar à cozinha para cuidar de outra fornada de guloseimas.

Na sala, enquanto aguardava com alegria antecipada o bolo ou doce que viria a seguir, Mariazinha olhou ao redor para distrair-se enquanto esperava. A parede cheia de quadros sempre a encantara, e ficava imaginando como teria sido bom conhecer os bisavós e tataravós que a olhavam dos retratos. Ao lado deles, santos, muitos santos, ajudavam a fechar praticamente cada centímetro da parede. A única exceção era o canto onde estava o relógio, o velho relógio de pêndulo que tiquetaqueava as horas com uma solenidade que fazia jus à sua idade...

Pouco depois, terminava a segunda fatia de cuca recheada quando o pêndulo bateu pausadamente. Bléin. Bléin. Bléin. Bléin. Quatro horas. Logo, logo teria de ir para casa. Mas, antes, ia ver se a avó já tinha pronto o pote de bolo que sempre levava para comer no caminho...

Lambendo os farelos que tinham ficado nos dedos para não desperdiçar nada daquela delícia, levantou-se e, quase tão solene quanto o velho relógio, encaminhou-se para a cozinha.

Abriu a porta devagarzinho, sem fazer ruído. A avó, como ela esperava, estava parada em frente ao balcão, uma bacia nas mãos, misturando os ingredientes para mais uma fornada de biscoitos. O que ela não esperava ver era Kerb, o gato de longos pelos brancos da Oma, sentado sobre as duas patas traseiras e recitando calmamente em alemão os ingredientes que estavam no livro de receitas que ele segurava com as outras duas patinhas.

– Zwei glass Mel... Ein glass Zucker... Drei…

Olhos arregalados, Mariazinha deixou escapar uma exclamação. A avó virou-se, enquanto Kerb lhe lançava um olhar de quem estava chateado pela interrupção.

– Oma... Vovó, ele... ele fala! – conseguiu dizer.

– É claro que eu falo! – indignou-se o gato, largando o livro no chão para poder colocar as
patinhas na cintura. – E por que não iria falar?

Sorrindo, Oma Guerta meteu-se na conversa.

– Kinder, Kinder... Maria, Kerb, não quero discussões aqui...

Ainda pensando que tinha adormecido no sofá da sala e que estava sonhando, Mariazinha beliscou-se. Ai. Doeu... Mas então...

– Isso é de verdade, mesmo?

Antes que Kerb respondesse outra vez, a avó tomou a menina no colo.

– Mein Kind, Komm hier... Senta aqui no meu colo um pouquinho, a Oma vai te contar um segredo...

E, na meia hora seguinte – enquanto um impaciente Kerb andava de um lado para o outro, sentindo-se ignorado –, a avó Guerta revelou à neta o porquê de seus doces serem sempre tão deliciosos. Tudo começava com o livro de receitas mágico, trazido por suas antepassadas quando elas imigraram para o Brasil. Passado sempre de mãe para filha, ou de avó para neta, ele trazia instruções mágicas para o preparo de qualquer prato, fazendo-os mais saborosos do que os feitos pelos mais renomados mestre-cucas.

– Mas aqui... mas aqui não tem nada escrito – espantou-se a menina, folheando o caderninho que a avó pegara do chão e deixara sobre a mesa.

– É aí que entra o Kerb... – disse, chamando com um gesto o gato, que alegrou-se ao ser mais uma vez lembrado.

– Eu, como meu pai e meu avô e o pai e o avô do meu avô antes de mim, sou o único que consegue ver a escrita invisível que tem no livro mágico. Tenho a missão de ler essas receitas para minha ama, e, também, de dizer as palavras que completam a mágica – concluiu o felino, todo importante.

Os olhos de Mariazinha arregalaram-se ainda mais.

– Palavras mágicas?!

– Sim, palavras mágicas – acrescentou o gato, outra vez impaciente. Será que aquela menina não sabia nada de nada? – As palavras mágicas que vão fazer os biscoitos, as cucas e o que mais sua
avó fizer serem os mais deliciosos já vistos.

A pequena olhou do gato para a avó, como que querendo confirmar a informação. Oma Guerta meneou a cabeça.

– E quais são as palavras mágicas? – quis saber Mariazinha.

Condescendente, Kerb dirigiu-se até o forno de barro, ergueu-se outra vez nas patinhas traseiras e, com uma colher de madeira, bateu duas vezes na portinha:

– Wunderbaressen gegessen! – exclamou, também duas vezes. Depois, com um floreio, chamou Mariazinha para abrir o forno.

A menina abriu, cada vez mais maravilhada, e o aroma dos biscoitos recém-assados encheu a cozinha. Sem se conter, bateu palmas de contentamento. A avó chegou ao seu lado e, pegando-a outra vez no colo, disse:

- Mädchen, agora que você já sabe como a Oma faz tanta coisa boa, eu tenho uma pergunta muito importante para lhe fazer. Você quer aprender a fazer esses biscoitos mágicos, para ser a seguidora da tradição da família?

Agora, sim, Mariazinha tinha certeza de que estava sonhando. Ela, fazendo aqueles biscoitos? Como poderia...?

– E você vai ter o seu próprio gatinho – completou a avó.

Levantando-se e levando a menina pela mão, Oma Guerta voltou com ela para a sala. Ali, dirigiu-se para o velho relógio de pêndulo, sob o qual ficavam duas grandes portas de madeira que Mariazinha nunca tinha visto serem abertas. Pois a avó abriu-as e entrou, chamando Kerb e a neta para acompanhá-la. Era outra surpresa. Embora parecesse de fora um pequeno armário, lá dentro o espaço era gigantesco. Prateleiras e mais prateleiras de ingredientes, potes, cestas, até um jardinzinho tinha num canto. E uma casinha...

– Kätzie, venha cá... – chamou Kerb, parando à porta da casinha, e um maravilhoso e peludo gatinho apareceu.

– O que foi, papai? – perguntou a bolinha de pelos.

– Esta é sua ama, Mariazinha. A partir de agora, ela vai vir aqui todo dia para cozinhar conosco, e você vai ajudá-la – declarou o gato, solene.

Kätzie abriu um sorriso tímido para Mariazinha, que, encantada, pegou-o no colo. Precisava pensar: assumir a cozinha da avó era uma grande responsabilidade, mas aquele gatinho era tão lindo...

– Pense até amanhã, mein Kind – disse a avó, adivinhando-lhe as dúvidas. – Volte de manhã, para me dizer o que decidiu. Por enquanto, leve Kätzie com você.

No caminho para casa e durante toda a noite Mariazinha não conseguia pensar noutra coisa que na proposta da avó. Adorava seus biscoitos e suas cucas, e pensar que um dia poderia fazê-los... mas tinha medo de acordar no outro dia e ver que estivera certa, que tudo era mesmo um sonho. Adormeceu abraçada no gatinho, e sonhou com ele recitando as receitas ao seu lado...

Acordou com as lambidas de Kätzie.

– Bom dia, ama – disse o gatinho sorridente.

Todas as hesitações de lado, Mariazinha pulou o café da manhã. Com Kätzie nos braços, correu para a casa da avó. Chegando no jardim, estacou e olhou a casa. Parecia diferente hoje, embora ao mesmo tempo também fosse a mesma de sempre. Toda vez que entrava ali gostava de imaginar que estava entrando em um lugar especial, um mundo mágico. Agora, ia entrar na casa sabendo que isso era verdade, e que a partir de agora ela também faria parte daquela mágica. Bem que a mãe sempre dizia que os mais velhos têm muito a ensinar aos mais jovens...

quinta-feira, 12 de março de 2009

Temporada de caça

(Maristela Scheuer Deves)

Tudo começou certo dia quando, durante o momento cívico, o professor hasteava a bandeira e uma vespa picou-lhe a cabeça. Indignado com a audácia do inseto, o mestre declarou guerra a esses pequenos “bandidos”.

– A partir de hoje, pago um cruzeiro a quem me trouxer 100 vespas, abelhas ou marimbondos mortos – declarou aos alunos, fazendo a alegria da garotada.

Querendo incluir na lista outros animais que considerava peçonhentos, o mestre decidiu que pelo mesmo valor compraria também 10 aranhas ou um rabo de cobra venenosa.

Foi um alvoroço na escola da pequena comunidade rural de Rincão Vermelho! Daquele dia em diante, os meninos das redondezas começaram a passar todo o tempo livre à cata dos “produtos”. Se alguém destruía um ninho de vespas, lá estavam os pequenos, contando os 100 insetos para montar mais um pacotinho e levar ao professor, que pagava por eles e enterrava no quintal da escola.

– Já ganhei 10 cruzeiros – vangloriava-se Luizinho, contando as moedas comercializadas com a venda dos bichinhos.

– E eu, 12 – completava Adão, que não podia ficar para trás. A concorrência era grande, e foi se tornando cada vez mais acirrada.

Com o tempo, as crianças foram ficando mais espertas – e malandrinhas, também. Percebendo que o mestre não contava as vespas ou abelhas ao recebê-las, começaram a juntar apenas 80 ou 90 em cada pacote, pois assim rendia mais.

As aranhas também eram muito procuradas, e os alunos desenvolveram até mesmo uma técnica especial para pega-las: colocavam uma bolinha de cera na ponta de um barbante e a desciam nos buracos do quintal, como isca. Deu até briga quando Adão descobriu que Carlinhos, outro colega da terceira série, havia “pescado” umas aranhas atrás de uma mata da propriedade do seu pai.

– Se foi no terreno do meu pai, as aranhas são minhas – defendia Adão, mostrando os punhos.

– Eu é que as peguei, então elas são minhas – defendia-se Carlinhos.

O professor teve de apartar a briga, e, como já tinha pagado pelos insetos e não iria pagar duas vezes, apenas aconselhou Carlinhos a não caçar mais nas terras da família do outro menino. Adão não gostou, mas conformou-se.

A temporada de caça seguiu aberta por várias semanas. Numa segunda-feira, Luizinho ia para a escola quando, no caminho, levou um susto: quase pisou numa cobra. Acabou vendo que não era venenosa – os meninos maiores é que a tinham matado e colocado no meio da estrada, para assustar as meninas. Aproveitando a “sorte” de ela já estar morta, Luizinho cortou o rabinho do réptil, vendendo-o ao mestre como se fosse animal peçonhento. Tendo visto o que o colega fizera, outros o delataram.

Foi a gota d’água, e o professor decidiu encerrar sua guerra aos insetos e animais peçonhentos. Até porque, provavelmente, boa parte do seu salário devia estar sendo comprometida com a aquisição dos “troféus”...